Lucas Galvão de Britto
Marina Vieira de Figueiredo
Apresenta-se panorama jurisprudencial sobre a alteração de lançamento tributário diante da figura do “erro de direito” no contexto das recentes decisões do STJ e do TIT-SP sobre classificação fiscal. A avaliação crítica mostrou que, mesmo diante de oscilações na jurisprudência do STJ quanto à suficiência dos atos de “conferência aduaneira” para identificar o ato bastante à caracterização de mudança de critério jurídico, a jurisprudência do TIT tem se pautado pela preservação da confiança legítima do contribuinte, reconhecendo a impossibilidade de aplicação retroativa de novos parâmetros interpretativos diante de orientações gerais da Administração Tributária e até mesmo de lançamentos já lavrados contra o mesmo contribuite.
Palavras-chave: erro de direito, alteração de critério jurídico, classificação fiscal
O Código Tributário Nacional é claro ao prescrever que uma vez constituída a relação jurídica tributária pelo Fisco[3], é possível a sua revisão de ofício pela autoridade administrativa. No entanto, para que se altere o lançamento anterior e, portanto, os termos da norma jurídica introduzida no sistema, há que se observar algumas limitações.
Em primeiro lugar, é indispensável que se comprove que está presente, no caso, uma das situações previstas no art. 149 do CTN, ou seja, que se configurou hipótese que, nos termos da lei, justifica a revisão do ato praticado (como, por exemplo, a necessidade de apreciação de fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior).
Há, também, que se verificar se transcorreu ou não o prazo decadencial, uma vez que, nos termos do art. 149, parágrafo único, “a revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública”.
Mas não é só. Ao promover a revisão do lançamento, não pode a autoridade administrativa, de modo algum, alterar os critérios jurídicos que orientaram a prática do ato originário, em razão do que prescreve o art. 146 do CTN:
Art. 146. A modificação introduzida de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução. (grifamos)
De fato, não há como admitir que a Administração Pública altere os critérios para formalização de créditos tributários e pretenda aplicá-los retroativamente, alterando situações jurídicas plenamente constituídas. Afinal, providência dessa natureza representaria evidente violação ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (princípio da irretroatividade).
O problema, no entanto, é definir o que configura “modificação de critérios jurídicos” e a questão é bem ilustrada pelas decisões, tanto na esfera judicial quanto na esfera administrativa, que tratam da classificação fiscal de mercadorias e seus impactos na exigência de tributos.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em diversas oportunidades, foi chamado a manifestar-se sobre as situações que permitiriam ou não a revisão do lançamento, tendo decidido que é possível a revisão nas hipóteses nas quais se verifica erro de fato, mas não quando se trata de erro de direito, uma vez que, neste caso, ocorreria a mudança de critério jurídico.
Ao examinar as decisões que envolvem erro de classificação fiscal e, portanto, no cálculo do tributo, verifica-se que, por vezes, tal equívoco é qualificado como “erro de direito”, não admitindo, pois, a revisão pela Autoridade Administrativa. Vejamos alguns exemplos:
TRIBUTÁRIO – IMPORTAÇÃO – DESEMBARAÇO ADUANEIRO – RECLASSIFICAÇÃO DA MERCADORIA – REVISÃO DE LANÇAMENTO POR ERRO DE DIREITO – IMPOSSIBILIDADE – SÚMULA 227 DO EXTINTO TFR.
TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. EQUÍVOCO NA DECLARAÇÃO DE IMPORTAÇÃO. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. ALÍQUOTA. ERRO DE DIREITO. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE.
TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. CLASSIFICAÇÃO TARIFÁRIA. AUTUAÇÃO POSTERIOR. REVISÃO DE LANÇAMENTO. ERRO DE DIREITO. SÚMULA 227/TRF. PRECEDENTES.
É interessante notar que, nestes casos, a Corte Superior parte da premissa de que a conferência aduaneira corresponde a ato de lançamento e, portanto, qualquer tentativa posterior de modificar os critérios para cobrança do tributo não poderiam ser aceitas, salvo se a modificação se der por erro quanto aos fatos.
Além disso, o erro de direito é qualificado como equívoco na valoração jurídica dos fatos, o que, portanto, implicaria modificação dos critérios jurídicos que orientaram o lançamento. Para melhor compreensão da ideia, vejamos trecho do voto proferido pelo Min. Luiz Fux no julgamento do REsp1.112.702[7]:
Com efeito, consoante se observa houve erro quanto à classificação tarifária da mercadoria desembaraçada cujas características constavam da Declaração de Importação. A mercadoria restou conferida pelo Agente Fiscal, com suas características específicas, que a identificava para fins da classificação tarifária, e aquela autoridade, ratificou a identificação física contida na Declaração de Importação. Concluída, a conferência aduaneira, sem impugnação de qualquer espécie, foi o produto desembaraçado e entregue a importador, após pagos os tributos correspondentes. Consequentemente, deve se presumir que a classificação tarifária indicada na Declaração de Importação estava consoante o enquadramento da mercadoria na tarifa legal.
In casu, assentou o Tribunal de origem que “Nenhum fato novo foi alegado para justificar esse ato administrativo, nem tampouco houve divergência quanto à natureza da mercadoria que pudesse ensejar tal comportamento. Não pode a Administração pura e simplesmente rever seus atos sob o fundamento de que outro deveria ser o procedimento fiscal com classificação diversa daquela adotada para as mercadorias importadas; depois de ter sido amplamente verificada essa situação de fato em procedimento anterior, consubstanciado no desembaraço da mercadoria e conseqüente homologação do lançamento. Se em seu entender houve erro de lançamento anterior, somente em importações posteriores poderia tal fato ser argüido” (fls. 146-147). Assim, contra a inspeção aduaneira realizada não se objetou qualquer irregularidade, bem como contra qualquer informação prestada ao Fisco, que sim errou em classificar, conforme consta do v. acórdão recorrido. (grifamos)
Como se vê, parte-se da premissa de que o erro de direito é um erro na aplicação da norma. Significa dizer: não há erro quanto aos fatos, que são incontroversos. O problema diz respeito à norma aplicável àquele caso: num primeiro momento, a autoridade competente decide pela aplicação de uma e, em momento posterior, defende a aplicação de outra, resultando, assim, em relação jurídica com conteúdo distinto.
No entanto, é necessário observar que o erro de direito, em sentido estrito, corresponde a um desajuste entre o relato da norma individual e concreta e o que prescreve a norma geral e abstrata (RMIT), ou seja, configura-se quando os elementos do fato jurídico tributário, no antecedente, ou os elementos da relação obrigacional, no consequente, estão em desalinho com os enunciados da hipótese ou da consequência da norma geral e abstrata.[8]
Verifica-se, pois, que o erro de direito corresponde aquilo que Alberto Xavier chama de erro em concreto, pois “refere-se a uma nova apreciação pela mesma autoridade (ou seu superior hierárquico) de um dado caso concreto, apreciação essa em relação à qual se constata ter havido defeituosa interpretação ou aplicação da lei”[9].
Coisa diversa é a mudança de critério jurídico, a qual, como bem observa referido autor, configura um erro de abstrato, ou seja, “tem caráter genérico, no sentido de que a ‘fonte’ da modificação é um ato genérico visando uma pluralidade indeterminada de casos, em relação aos quais se entendeu adotar uma ‘nova interpretação’ da lei”[10].
Sob tal perspectiva, as situações analisadas pela Corte Superior, nas quais a autoridade administrativa mal interpreta a lei, classificando erroneamente os bens importados e, por isso, calculando equivocamente os tributos devidos na operação, não poderiam ser qualificadas como a “mudança de critério jurídico” a que alude o art. 146 do CTN. Como consequência, este enunciado não poderia ser elencado como fundamento para obstar a revisão do lançamento nessas hipóteses.
Há que se destacar, por fim, que as decisões mais recentes do Superior Tribunal de Justiça têm considerado legítima a modificação da classificação fiscal no procedimento de revisão aduaneira. Confira-se:
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 1.022. ALEGAÇÕES GENÉRICAS. SÚMULA 284/STF. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. CONFERÊNCIA.CANAIS VERMELHO E AMARELO. CLASSIFICAÇÃO FISCAL. REVISÃO ADUANEIRA.POSSIBILIDADE.
PROCESSUAL CIVIL. ADUANEIRO. TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA N. 282/STF. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO – II.CLASSIFICAÇÃO TARIFÁRIA. LANÇAMENTO. REVISÃO. AUTO DE INFRAÇÃO.MULTA. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 50, 138 E 139 DO DECRETO-LEI 37/66, E DOS ARTS. 149 E 150, §4º DO CTN.
[…]
Contudo, ao examinas as razões de decidir, nota-se que a mudança de posição se deu por fundamento diverso.
De fato, nesses casos foi autorizada a mudança da classificação fiscal das mercadorias não pela inocorrência de mudança de critério jurídico, mas sim porque, nessas situações, a constituição do crédito tributário é feita pelo sujeito passivo e o Fisco tem o direito de fiscalizar tal atividade, potestadeque não se extingue com a conferência aduaneira.
Essa posição fica clara no seguinte trecho do voto proferido pelo Min. Mauro Campbell Marques no julgamento do REsp1201845:
A “conferência aduaneira” exige celeridade, já que a mercadoria está em zona primária ou secundária em depósito por conta do contribuinte. Quanto mais tempo demorar a conferência, mais tempo demorará o desembaraço aduaneiro, onerando sobremaneira o contribuinte e obstando as atividades do Fisco que precisa ter seu tempo aproveitado para atender aos outros despachos aduaneiros que estão na fila. Por tais motivos é que, dentro do procedimento de despacho aduaneiro (entre a entrega da declaração e o desembaraço aduaneiro) foi dada uma primeira oportunidade ao Fisco de, em 5 (cinco) dias úteis da conferência aduaneira, formalizar a exigência de crédito tributário e multas. Daí o prazo exíguo, com o intuito de se chegar logo ao desembaraço aduaneiro.
No entanto, essa primeira oportunidade não ilide a segunda oportunidade que surge dentro do procedimento de “revisão aduaneira”, que se dá após o desembaraço aduaneiro (portanto após o procedimento de despacho aduaneiro) onde o Fisco irá revisitar todos os atos celeremente praticados no primeiro procedimento e, acaso verificada a hipótese, efetuará o lançamento de ofício previsto no art. 149, do CTN. Este segundo procedimento está sujeito aos prazos decadenciais próprios do crédito tributário e das multas administrativas e fiscais correspondentes, consoante a letra do Decreto-Lei n. 37/66, em sua redação original:
Observa-se, porém, que o núcleo da mudança de entendimento do STJ consistiu na suficiência ou não do ato de conferência aduaneira para caracterizar manifestação da autoridade fiscal sobre a procedência da caracterização jurídica do fato. Em nenhum dos precedentes, porém, legitimar-se-ia o argumento de que seria dado à Administração corrigir erro de direito, pela via da revisão de lançamento.
Como mencionado no item precedente, erro de direito, em sentido estrito, não se confunde com alteração de critério jurídico, a qual pressupõe a substituição de uma interpretação da lei pela outra e, portanto, a ideia de que aquela primeira interpretação era defeituosa. Isso, no entanto, não quer dizer que é legítima a revisão do lançamento por erro de direito em sentido estrito (ou erro em concreto).
Como já assinalado, a revisão de ofício do lançamento depende da configuração de uma das hipóteses previstas no art. 149 do CTN. Significa dizer: para que se promova a revisão e eventual “correção” do lançamento originário, a Autoridade Administrativa precisa demonstrar qual daquelas situações se verificou no caso concreto.
Ao examinar esse enunciado, verifica-se, logo de início, que muitos dos seus incisos sequer tratam de hipótese de “revisão do lançamento”, contemplando, isso sim, aqueles casos em que a constituição do crédito tributário fica a cargo do sujeito passivo, cabendo ao Fisco tão somente fiscalizar essa atividade e, se entender necessário, efetuar o lançamento para constituir créditos não declarados.
De fato, se considerarmos o que dispõe o art. 142 do CTN, bem como o fato de que, no chamado “lançamento por homologação” cabe ao particular aplicar a regra-matriz de incidência do tributo e constituir a relação jurídica tributária, somente é possível falar em “lançamento”, no sentido estrito do termo, quando essa atividade é realizada pela Administração Pública. Nesse sentido, aliás, posiciona-se Paulo de Barros Carvalho[13]:
Quando celebrado pelo Poder Público, mediante iniciativa que a lei prevê, seja de modo originário, seja em caráter substitutivo daquele que o contribuinte não fez em tempo hábil, como também a lei estabeleceu, utilizaremos o nome ‘lançamento’, empregando ‘autolançamento’ para as circunstâncias em que a expedição da norma individual e concreta fique por conta do sujeito passivo.
Portanto, ao fiscalizar o ato praticado pelo sujeito passivo, o agente competente não está, propriamente, revisando um lançamento. Por isso concordamos com Alberto Xavier[14] quando afirma que, essencialmente, os motivos para revisão do lançamento são somente aqueles enunciados nos incisos VII, VIII e IX do art. 149, ou seja:
Ainda, porém, que se entenda de modo diverso, fato é que o dispositivo em momento algum faz referência ao denominado erro de direito (em sentido estrito). Sendo assim, tal hipótese não autorizaria a revisão de ofício do lançamento[15].
O Tribunal de Impostos e Taxas já se manifestou, em algumas oportunidades, sobre a matéria em exame. Dois casos, em especial, se destacam, uma vez que envolvem, especificamente, a classificação fiscal de mercadorias sujeitas à tributação.
Em julgamento recente, ocorrido em 06 de outubro de 2020[16], a 2ª Câmara Julgadora desse E. Tribunal examinou caso em que o contribuinte foi acusado de falta de pagamento do imposto por ter utilizado, para o cálculo do ICMS sobre operações com “pão de queijo” e “similares” (NCM 1901.20.00), alíquota de 12% e redução de base de cálculo para que a tributação resultante fosse de 7%.
Como bem observou o D. Relator, Juiz Celso Barbosa Julian, a questão controvertida diz respeito à classificação fiscal das mercadorias, as quais eram inicialmente classificadas nos códigos NCMs 1902.11.00 e 1902.00 e passaram a ser classificadas no código NCM 1901.20.00. Vejamos:
Sob essa ótica, a premissa fática que embasa a autuação assenta-se na exata classificação fiscal dos produtos autuados.
Com efeito, ao pesquisar sobre o tema aqui difundido, apurei que a Secretaria da Fazenda e do Planejamento editou a Decisão Normativa CAT n. 03/2019, onde firma o seu entendimento acerca da definição dos produtos pão de queijo, com sustentação na Solução de Consulta Cosit 98263, de 27/09/2018.
Confira-se:
“DECISÃO NORMATIVA CAT- 3, DE 30-5-2019
(DOE 31-05-2019)
ICMS – Saídas internas de pão de queijo – Mudança de entendimento da Secretaria da Receita Federal doBrasil em relação à classificação fiscal na NCM – Tratamento tributário.
[…]
do Anexo II do RICMS/2000;
Vale dizer, após a publicação da Decisão Normativa CAT-03/2019 não existem mais dúvidas, de que, os produtos comercializados pela recorrente, durante o período da autuação(jan.2014 amaio.2018) amoldam-se a classificação NCM 1902, considerando a expressa mudança de entendimento da RFB, quanto a classificação fiscal do pão de queijo, do código 1902.11, para o código 1901.20 da NCM, tão somente a partir de 03/10/2018(Solução de Consulta Cosit nº 98263, de 27/09/2018)
Tanto é verdade, que o item 5, da já mencionada Decisão Normativa CAT-3, de30/05/2019, estabelece que:
[…] a partir do momento em que a RFB modificou seu entendimento, o tratamento tributário aplicado, no âmbito do ICMS, às operações com massas alimentícias não cozidas, nem recheadas ou preparadas de outro modo, que contenham ovos, classificadas no código 1902.11.00 da NCM, não mais se aplicam às saídas internas de pão de queijo, que passou a ser classificado no código 1901.20.00 da NCM […] (destaquei)
Logo, não há como se validar a postura fiscal que veio a reclamar a diferença do imposto(erro na base de cálculo e alíquota) albergando operações pretéritas praticadas pela recorrente com “pão de queijo e similares”, tomando, por base, nova classificação fiscal definida pela Receita Federal do Brasil, a partir de 03/10/2018, data da edição da Solução de Consulta Cosit nº 98263, de27/09/2018.
Passível de invocação, o quanto disposto no art. 146, do Código Tributário Nacional: […](grifos no original)
Como é possível perceber, considerou-se que, no caso, houve mudança de critério jurídico porque não se tratou de erro em concreto (erro de direito em sentido estrito), mas sim de erro em abstrato, ou seja, lançamento baseado em nova interpretação da lei fixada em ato genérico que se dirigia a uma pluralidade de casos. Essa decisão, ademais, arrima-se bem ao disposto no art. 24 da LINDB, segundo o qual o julgamento administrativo “levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.”
Noutra oportunidade, desta vez em decisão proferida pela 11ª Câmara Julgadora[17],o sujeito passivo foi acusado de não pagamento do ICMS referente a operações tributadas por ter aplicado alíquota de 12% nas saídas internas de mercadorias classificadas no código NCM 8409.9190, quando o correto, no entender da fiscalização, seria a aplicação de alíquota de 18%.
Ocorre que, como bem pontuou o D. Relator, no voto condutor do acórdão, embora não existisse divergência quanto à classificação das mercadorias e sua sujeição à alíquota de 18%, fato é que, anteriormente, o mesmo contribuinte foi autuado, desta vez por creditamento indevido, sob o argumento de que estariam sujeitas à alíquota de 12%. Vejamos:
Isto porque, tem-se nos autos que não há discussão sobre o enquadramento da mercadoria vendida pela autuada na NCM/SH 8409.9190. A autuação se dera pela utilização da alíquota de 12% para tais mercadorias, uma vez que estas não estariam descritas no Anexo III da Resolução SF nº 04/98, e consequentemente sujeitas a alíquota geral aplicável no Estado, ou seja, 18%.
Ocorre que conforme amplamente demonstrado pelo contribuinte, em autuação anteriormente lavrada em face de empresa hoje sucedida pela autuada (AIIM3.029.408-3), foram glosados créditos destacados a 18% em operações com mercadorias descritas no mesmo item NCM/SH (8409.9190), afirmando naquela oportunidade o Agente Fiscal de Rendas que estes produtos se enquadram na Resolução SF 04/98, razão pela qual deve se aplicar a alíquota reduzida (12%) nas operações com tais materiais.
Neste sentido foram transcritos diversos trechos da manifestação formal nos autos daquele AIIM, bem como acostada cópia da integralidade da manifestação aos autos.
Assim sendo, em atenção ao artigo 146 do CTN, entendo que assiste razão à Recorrente ao se utilizar da alíquota de 12% nas suas operações de saída do material descrito na NCM/SH 8409.9190, uma vez que esta fora a orientação por ele recebida da própria Administração tributária, em ato específico e direcionado a ele e à sua atividade, através do auto de infração lavrado anteriormente. O contribuinte não pode se prejudicar por agir em conformidade com orientação obtida de forma direta e clara (por meio de auto de infração mantido por este mesmo tribunal), em total atenção ao entendimento fiscal que lhe fora transmitido, e acima de tudo, dotado de boa-fé, como ocorre nos autos.
Neste sentido reconhece a doutrina sobre a aplicação do artigo 146 do Código Tributário Nacional. Se a mudança de critério Jurídico levaria à cobrança de tributo ou à sua majoração, em relação àquele mesmo fato jurídico, novo lançamento não poderá ser efetuado (TROIANELLI, Gabriel Lacerda. Interpretação da Lei Tributária: Lei interpretativa, Observância de Normas Complementares e Mudança de Critério Jurídico. Revista Dialética de Direito Tributário 176/76, p.80), sendo os critérios jurídicos utilizados para formalização de lançamento pela Administração inalteráveis com relação a um mesmo sujeito passivo, reconhecendo-se ainda, que tal posicionamento se mantém ainda que haja modificação de tal entendimento na jurisprudência administrativa e judicial, enquanto ele não for notificado da referida mudança. Isto é imposição do princípio da proteção da confiança.
Desta forma, a observância pelo contribuinte das normas administrativas tal como orientação recebida diretamente pelo Fisco, exclui a imposição de penalidades e a cobrança posterior do imposto com relação ao mesmo fato gerador, enquanto não se o comunicar da mudança de critério jurídico. (grifos no original)
Como se vê, neste caso verificou-se típico erro em concreto, na medida em que a mesma autoridade, apreciando um dado caso concreto, considerou defeituosa a interpretação anterior (operações sujeitas à alíquota de 12%), aplicando nova interpretação, dessa vez para sujeitar às operações à alíquota de 18%.
Observe-se que, neste caso, o erro foi qualificado como mudança de critério jurídico em relação a um mesmo sujeito passivo, o que resultaria em impossibilidade de manutenção do lançamento impugnado por ofensa ao art. 146 do CTN.
É necessário observar, no entanto, que não se trata, aqui, propriamente de revisão do lançamento, mas sim de dois lançamentos, relativos a operações diversas, que se basearam em interpretação legislativa distinta.
De todo modo, ainda que não se possa argumentar que não se trata, propriamente, de mudança de critério jurídico (erro em abstrato), fato é que, por força do princípio da segurança jurídica, não há como legitimar as duas autuações. Andou bem a Corte, portanto, ao invalidar o trabalho fiscal.
É incontroverso para a doutrina e jurisprudência que é vedada a alteração de lançamento pela revisão de critério jurídico utilizado pela própria administração.
Nesse particular, especialmente no que se refere à classificação fiscal, a jurisprudência oscila quanto à definição de quais modalidade de atos da administração bastariam para afirmar a utilização de um critério jurídico em lançamento, como demonstrado acima pelas decisões do STJ.
Por outro lado, a experiência do TIT, coincidindo com as melhores orientações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, reconhece ainda a impossibilidade de que a administração aplique retroativamente as alterações de critérios jurídicos consubstanciados seja em orientações gerais (tais como Portarias CAT e Soluções de Consulta), seja em comandos individuais (outras autuações).
BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
CARVALHO. Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30 ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
XAVIER, Alberto. Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
[1]Mestre e doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor dos cursos de graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor do curso de mestrado Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Advogado. E-mail: lucas@barroscarvalho.com.br.
[2]Mestre e doutora em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Conselheira Julgadora no Conselho Municipal de Tributos da Prefeitura de São Paulo (CMT). Juíza Suplente no Tribunal de Impostos e Taxas (TIT/SP). Professora dos Cursos de Especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e da Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC-SP (COGEAE). Advogada. E-mail: marina@mvfigueiredo.com.br.
[3]Muitos são os que defendem que apenas a Administração Pública é competente para constituir relações jurídicas tributárias. José Souto Maior Borges, por exemplo, é categórico ao afirmar que o ato de lançamento, “em qualquer hipótese, é sempre de competência privativa da autoridade administrativa (art. 142, caput)”, sendo possível a participação do particular apenas no procedimento que o antecede (Lançamento tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 370). No entanto, há muito consolidou-se na jurisprudência (Súmula nº 436 do STJ) a interpretação – com a qual concordamos – segundo a qual, nos chamados lançamentos por homologação, cabe originariamente ao sujeito passivo constituir o crédito tributário, ficando os agentes administrativos responsáveis por fiscalizar essa atividade e, se necessário, promover o lançamento de valores não declarados.
[4]AgRg no REsp 1347324/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/08/2013, DJe 14/08/2013.
[5]AgRg no Ag 1422444/AL, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/10/2012, DJe 11/10/2012.
[6]REsp 1112702/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/10/2009, DJe 06/11/2009.
[7]REsp 1112702/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/10/2009, DJe 06/11/2009. Destacamos.
[8] “O erro do lançamento […] pode ser de direito. Quer os elementos do fato jurídico tributário, no antecedente, quer os elementos da relação obrigacional, no conseqüente, quer ambos, podem, perfeitamente, estar em desalinho com os enunciados da hipótese ou da conseqüência da regra-matriz do tributo, acrescendo-se, naturalmente, a possibilidade de inadequação com outras normas gerais e abstratas, que não a regra-padrão de incidência.” (CARVALHO, Paulo de Barros.Curso de direito tributário. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019,p. 436)
[9]XAVIER, Alberto. Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 259.
[10]Idem.
[11]REsp 1656572/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/04/2017, DJe 02/05/2017.
[12]REsp 1201845/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/11/2014, DJe 24/11/2014.
[13]Curso de direito tributário, p. 396.
[14]“São três os fundamentos da revisão do lançamento: (i) a fraude ou falta funcional da autoridade que o praticou; (ii) a omissão de ato ou formalidade essencial; (iii) a existência de fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior. Pode, assim, dizer-se que os vícios que suscitam a anulação ou reforma do ato administrativo de lançamento são a fraude, o vício de forma e o erro.”(Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário, p. 249).
[15] A este respeito, afirma Alberto Xavier: “O verdadeiro fundamento da limitação da revisão do lançamento à hipótese de erro de fato resulta do caráter taxativo dos motivos da revisão do lançamento enumerados no artigo 149 do Código Tributário Nacional e que, como vimos, são, além da fraude e do vício de forma, dever apreciar-se ‘fato não conhecido ou não provado por ocasião de lançamento anterior’ (inciso VIII). Significa isto que, se só pode haver revisão pela invocação de novos fatos e novos meios de prova referentes à matéria que foi objeto de lançamento anterior, essa revisão é proibida no que concerne a fatos completamente conhecidos e provados.” (Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário, p. 255).
[16]“ICMS – Falta de pagamento do imposto – Utilização de base de cálculo e alíquota incorretas. A premissa fática que embasa a autuação assenta-se na exata classificação fiscal dosprodutos autuados. Com a edição da Decisão Normativa CAT-03/2019, não há como se validar a postura fiscal que veio a reclamar a diferença do imposto albergando operaçõespretéritas praticadas pela recorrente com “pão de queijo e similares”, tomando, por base, nova classificação fiscal definida pela Receita Federal do Brasil, a partir de 03/10/2018.Art. 146, do CTN – Mudança de critério jurídico – Impossibilidade – Recurso ordinário conhecido e provido.” (AIIM 4114943-9, Recurso ordinário, 2ª Câmara Julgadora, Rel. Celso Barbosa Julian, j. em 06/10/2020.)
[17] “ICMS – CREDITO – INTERPRETAÇÃO E MUDANÇA DE CRITÉRIO JURÍDICO PELA FAZENDA – CUMPRIMENTO PELO CONTRIBUINTE DE RECOLHIMENTO DE IMPOSTO APLICANDO-SE A ALIQUOTA INDICADA PARA DETERMINADO NCM EM AUTO DE INFRAÇÃO RECEBIDO ANTERIORMENTE. AUSENCIA DE DISCUSSÃO NOS AUTOS SOBRE O ENQUADRAMENTO DO PRODUTO NA NCM UTILIZADA PELO CONTRIBUINTE, TAMBEM EM ATENÇÃO A POSICIONAMENTO ANTERIORMENTE EXARADO PELA FISCALIZAÇÃO. ARTIGO 146 DO CTN. CREDITO. INSUMOS. MATERIAIS INTERMEDIARIOS. CONSUMO NA PRODUÇÃO. ARTIGO 40 DA LEI 6.374/89 E 66 DO RICMS/SP. POSSIBILIDADE DE APROVEITAMENTO DO CREDITO RELATIVO A MERCADORIA ENTRADA OU ADQUIRIDA PARA UTILIZAÇÃO E EMPREGO DIRETO NA INTEGRAÇÃO DO PRODUTO OU PARA CONSUMO NO RESPECTIVO PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO OU PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. APLICAÇÃO ART. 112, III CTN – NOS CASOS DE LEGISLAÇÃO QUE DEFINA PENALIDADES, DEVE SER INTERPRETADA DE MANEIRA MAIS FAVORÁVEL AO ACUSADO QUANDO HOUVER DUVIDA QUANTO A NATUREZA OU CIRCUNSTANCIAS MATERIAIS DO FATO OU A NATUREZA E EXTENSAO DE SEUS EFEITOS. RECURSO PROVIDO EM PARTE.” (AIIM 4053663-4, Recurso ordinário/Recurso de ofício, 11ª Câmara Julgadora, Rel. Paulo Victor Vieira da Rocha, j. em 14/12/2016).