Paloma Nunes Góngora
Mestranda em Direito Tributário pela PUC-SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Direito Empresarial pela PUC-SP. Advogada.
Tiago Carneiro da Silva
Mestre em Direito Tributário pela USP. Especialista Direito Tributário pelo IBET e em Direito Público pela PUC Minas. Graduando em Ciência Contábeis pela FIPECAFI. Advogado.
O presente artigo analisa a hipótese de que, se o Supremo Tribunal Federal deixar de modular os efeitos de uma mudança jurisprudencial em matéria tributária, os Tribunais de origem estão autorizados, a partir das especificidades do caso concreto e das eventuais consequências práticas, a atribuir efeitos prospectivos ao novo precedente vinculante do tribunal superior, nos termos dos artigos 927, § 3º, do CPC/15 e 20, 23 e 24 da LINDB, a fim de preservar situações que foram constituídas com suporte em interpretação dominante à época. Tal suposição será observada a partir das circunstâncias práticas surgidas nos processos judiciais vinculados aos Temas de Repercussão Geral 69 e 985, referentes à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins e à incidência de contribuição social sobre o terço constitucional de férias, respectivamente
Palavras-chave: Precedentes – Alteração jurisprudencial – Modulação dos efeitos – Segurança jurídica – Proteção da confiança
This article aims to demonstrate that, in the event the Supreme Court decides not to modulate the ef-fects of an overturned precedent in tax matter, the court of appeals would be authorized, based on the specificities of the individual case under examination and the possible practical consequences, to attribute prospective effects to the new binding high court precedent, according of arts. 927, § 3º, of CPC/15 and 20, 23 and 24 of LINDB, in order to preserve the situations that were constituted based on the previous dominant interpretation. This assumption will be observed based on the practical circumstances that have arisen in the judicial proceedings linked to General Repercussion Issues 69 and 985, concerning the exclusion of the ICMS from the PIS and COFINS tax bases and the levy of social contribution on one-third vacation pay, respectively.
Keywords: Precedent – Overruling – Overturned precedent – Legal certainty – Protection of trust
Para citar este artigo: Góngora, Paloma Nunes; Silva, Tiago Carneiro da. A modulação dos efeitos pelos tribunais locais em observância aos princípios da segurança jurídica, da irretroatividade geral e da proteção da confiança. Revista de Direito Tributário Contemporâneo. vol. 35. ano 7. p. 177-199. São Paulo: Ed. RT, out./dez. 2022. Disponível em: inserir link consultado. Acesso em: DD.MM.AAAA.
1.Introdução – 2.Os precedentes judiciais e a interpretação do art. 927, §§ 3º e 4º, do CPC/15 – 3.A alteração jurisprudencial e o disposto nos artigos 20, 23 e 24 da LINDB – 4.A possibilidade de modulação pelos Tribunais de origem diante das especificidades do caso concreto, em observância aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança – 5.Considerações finais – 6.Referências bibliográficas
O sistema tributário brasileiro se encontra, detalhadamente, positivado no texto constitucional. Os conflitos envolvendo contribuintes e fisco, em sua grande maioria, têm início no âmbito administrativo e terminam no Supremo Tribunal Federal (STF), ensejando discussões que se perpetuam no tempo.
As expectativas e incertezas quanto ao modo de tributação no Brasil exigem estabilidade, integralidade e coerência na interpretação do sistema jurídico tributário, atributos que podem ser cultivados no exercício da atividade jurisdicional, na etapa final de atribuição de sentidos aos enunciados prescritivos, ao serem interpretados pelo Poder Judiciário.
A estabilidade da jurisprudência remete à confiança, pressupondo a previsibilidade. Com efeito, o contribuinte precisa ter conhecimento prévio acerca das possíveis intervenções do Estado no seu patrimônio para pautar suas condutas na esfera tributária. Significa dizer que, assim, poderá computar seus encargos decorrentes da exação tributária e identificar quais seriam seus deveres instrumentais, tudo isso com base na solidificação jurisprudencial.
Nesse contexto, o presente estudo procura compreender o alcance normativo do artigos 927, § 3º, do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15 (LGL\2015\1656)) e artigos 20, 23 e 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), objetivando responder ao seguinte questionamento: na hipótese de o STF deixar de modular os efeitos de uma virada jurisprudencial, o Tribunal de origem estaria autorizado, diante das especificidades do caso concreto e eventuais consequências práticas, a atribuir efeitos prospectivos ao novo precedente para preservação das situações constituídas, a partir da interpretação normativa dominante à época?
Com lastro nos princípios constitucionais da segurança jurídica, da irretroatividade geral e da proteção à confiança do contribuinte, a resposta à referida indagação será desenvolvida considerando os desafios enfrentados nos inúmeros processos judiciais vinculados aos Temas de Repercussão Geral 69 e 985, referentes à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins e à incidência de contribuição social sobre o terço constitucional de férias, respectivamente.
Na Constituição Federal de 1988 (CF/88 (LGL\1988\3)), o legislador constituinte positivou importantes valores na forma de princípios jurídicos, que correspondem a normas eleitas pelo operador do Direito como sendo de alta carga axiológica, permitindo, dessa forma, orientar a atividade interpretativa na condução e construção do Direito. Para além
de seu elevado viés valorativo, certos princípios funcionam também como “limites objetivos1”, pois suas estruturas de comando denotam verdadeiras regras.
No tocante ao direito de ação e acesso à justiça, o art. 5º, XXXV estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se de dispositivo que preconiza, de forma concreta, o princípio da inafastabilidade da Justiça, garantindo solução jurisdicional aos litígios.
Para conferir efetividade às normas de direito material por meio do devido processo legal esculpido no art. 5º, LV, da CF/88 (LGL\1988\3), é imprescindível a edição de normas jurídicas processuais. Atualmente, encontra-se vigente o CPC/15 (LGL\2015\1656), que buscou estabelecer verdadeira harmonia com as diretrizes constitucionais.
Na Exposição de Motivos do novo código processual, a Comissão de Juristas acentuou que, entre os principais temas debatidos durante sua elaboração, o mais expressivo foi a simplificação do sistema recursal para redução de posicionamentos díspares nos Tribunais Julgadores a respeito de mesma matéria jurídica.
Apesar de a atividade interpretativa encontrar balizas no texto constitucional, ainda assim, torna-se necessário estabelecer limites à interpretação do Direito com vistas à coerência do sistema jurídico. Isso, porque cada julgador acaba por atribuir distintas significações aos enunciados prescritivos, tendo em vista as experiências adquiridas e os valores morais sedimentados ao longo de sua vida.
A recomendação do art. 926 do CPC/15 (LGL\2015\1656) no sentido de que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” mostra a relevância crescente das decisões julgadas sob o rito dos repetitivos2 na regulação das condutas intersubjetivas. Tem-se, hoje, um sistema processual baseado em precedentes, em que o comportamento dos particulares, cada vez mais, está pautado na interpretação das normas jurídicas realizada pelo Poder Judiciário.
Segundo o processualista Fredie Didier Jr., o julgador, ao proferir uma decisão judicial, constrói duas normas jurídicas:
Com efeito, a aplicação do precedente pelo operador do Direito constituiria, nos dizeres de Bustamante4, uma atividade reconstrutiva da norma jurídica. Isto é, uma tarefa analítico-cognitiva, na medida em que se busca desvendar as premissas normativas constantes da decisão judicial paradigma, capazes de gerar precedentes judiciais para solução de casos futuros.
Quando reiteradamente aplicado, o precedente se transforma em jurisprudência que, caso seja dominante, pode dar ensejo à edição de um enunciado sumular. Noutras palavras: “a súmula é o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral) de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente5”.
A uniformização da jurisprudência nos Tribunais Pátrios cria modelo de expectativa de conduta presente, tendo em vista que o jurisdicionado passa a nortear suas ações em entendimentos já consolidados, o que proporciona um verdadeiro ambiente de estabilidade e segurança jurídica futura. Por isso, Misabel Derzi afirma que, diversamente do que ocorre no mundo real onde o tempo do relógio é unidimensional, no sistema jurídico, o tempo é multidimensional, pois “mescla passado, presente e futuro em suas operações internas6”.
Caso o Poder Judiciário venha a modificar sua interpretação sobre determinado texto normativo, escolhendo outra solução dentre a gama de significações passíveis de atribuição à norma, acabará por criar regra jurídica, o que equivale dizer a uma nova lei dotada de outro significado jurídico.
Em situações assim, o art. 927, em seu § 3º7, do CPC/15 (LGL\2015\1656) prevê a modulação dos efeitos da alteração de jurisprudência dominante. A despeito de o novo precedente se estabelecer em sede de repetitivos, a modulação pode vir acontecer de duas formas distintas: i) pelo próprio Tribunal julgador no bojo processo paradigma ou, então, ii) caso não haja fixação da modulação na ação condutora, pelos demais Tribunais e até mesmos pelos próprios magistrados de primeira instância, a partir da análise do caso concreto.
Para Nelson Nery Júnior, não “precisaria haver previsão legal, tampouco a aplicação analógica ou extensiva8” do
art. 27 da Lei 9.868/99 (LGL\1999\138)9, para que seja atribuída eficácia ex nunc aos novos entendimentos firmados, uma vez que referida solução estaria de acordo com o próprio sistema constitucional brasileiro.
Sendo assim, enquanto a jurisprudência, dita primitiva, tem eficácia retroativa, ou seja, efeitos ex tunc, em relação às modificações jurisprudenciais, prejudiciais à parte que confiou em precedentes anteriores, a solução se inverte, devendo necessariamente a regra ser a modulação de efeitos com eficácia ex nunc.
Sobre o dever do Poder Judiciário em modular os efeitos de nova orientação judicial, interessante são as palavras do Ministro Roberto Barroso no julgamento dos Embargos de Declaração realizado no RE 574.706 – Tema 69, marcado por cenário de alteração jurisprudencial quanto à exclusão do ICMS da base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins:
“O dispositivo 927, § 3º, do CPC (LGL\2015\1656) fala ‘pode’, quando eu, pessoalmente, acho que, em matéria tributária, o verbo próprio seja ‘deve’. Mudança de jurisprudência em matéria tributária deve ser prospectiva. É claro que, preferencialmente, quando em favor do contribuinte, em razão das limitações constitucionais ao poder de tributar, mas não vejo razão para mudar essa linha de entendimento, porque ela, eventualmente beneficia a Fazenda Pública.”
Portanto, resta evidente que os comandos impressos pelo art. 927, nos §§ 3º e 4º10, do CPC/15 (LGL\2015\1656) zelam pela segurança jurídica, irretroatividade geral, boa-fé do Poder Público e confiança do administrado.
A segurança jurídica figura como sobreprincípio11 por excelência, porquanto aparece da conjugação de diversos enunciados normativos com o intuito de assegurar direitos e garantias fundamentais. Para além de assegurar calculabilidade quanto à aplicação e interpretação das normas jurídicas, permite que o jurisdicionado detenha elevado estado de confiabilidade na atuação dos três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – para pautar suas condutas e, por conseguinte, de cognoscibilidade dos comandos exarados e das relações jurídicas construídas pelo Direito positivado12.
No atual sistema processual, baseado em precedentes, torna-se ainda mais relevante a observância ao princípio da boa-fé do Poder Judiciário. Tal postulado impõe coerência na prestação jurisdicional, ou seja, se o Judiciário antes conferiu segurança ao jurisdicionado de que estava correto na prática de determinado ato, sua esfera jurídica passada não pode ser prejudicada pela mudança abrupta de jurisprudência dominante.
Segundo o princípio da proteção da confiança, se o jurisdicionado praticou atos com fundamento em precedente formalmente vinculante, no sentido de que determinada norma era (i)legal ou (in)constitucional, uma nova posição jurisprudencial há de ser aplicada com eficácia apenas para o futuro.
À luz da irretroatividade geral (art. 5º, XXXVI, CF (LGL\1988\3)), tal como a lei não pode retroagir, a superação de entendimento jurisprudencial com efeitos vinculantes (overruling) sempre demanda efeitos prospectivos, impedindo que a eficácia da nova decisão paradigma prejudique direitos e atinja situações pretéritas consolidadas em anteriores previsões.
Nesse mesmo sentido, o Ministro Edson Fachin, citando o Ministro Roberto Barroso, reforçou o caráter obrigatório da modulação de efeitos em cenário de modificação jurisprudencial tributária ao apreciar o Tema 201 (RE 593.849), referente à restituição da diferença do ICMS pago a maior no regime de substituição tributária para a frente, se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida:
“16. Embora seja legítima e necessária a mudança de orientação do Tribunal, seja por mudança na realidade fática ou na percepção do que seja o melhor direito, a superação de uma linha de precedentes (overruling) deve envolver alguns cuidados. A estabilidade e a previsibilidade das relações jurídicas devem sempre ser levadas em conta na fixação dos efeitos temporais do novo entendimento. Em matéria tributária, particularmente, tenho sustentado que, como regra, a mudança da jurisprudência da Corte equivale verdadeiramente à criação de direito novo e, por tal razão, não pode operar efeitos retroativos.”
Por isso, a modulação dos efeitos consiste em valioso, senão indispensável, instrumento em caso de modificação jurisprudencial em processos de eficácia expansiva além das partes envolvidas na lide.
Inicialmente, o Decreto-Lei 4.657/1942 (LGL\1942\3) foi editado sob a denominação de Lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400). A despeito de sua nomenclatura original remeter ao código civilista, referido decreto sempre foi aplicado às demais normas integrantes do ordenamento jurídico brasileiro, sendo considerado uma lei de introdução às leis por conter normas gerais de i) incidência e aplicação de outras normas, ii) hermenêutica jurídica e iii) direito internacional privado. Por essa razão, a Lei 12.376/2010 (LGL\2010\2712) veio adequar sua denominação a essa realidade jurídica13, passando o decreto-lei a ser nomeado de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
No final de 2018, foi editada a Lei 13.655 que introduziu, no decreto-lei, onze novos artigos cuja finalidade principal foi garantir a “segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público14”, vinculando não apenas as autoridades administrativas integrantes do Poder Executivo, mas também os membros do Poder Judiciário e Legislativo e, até mesmo, os órgãos autônomos de controle, tais como os Tribunais de Contas e o Ministério Público.
Entre os dispositivos criados pela referida lei ordinária e introduzidos na LINDB, mostram pertinência com o tema da modulação dos efeitos da alteração jurisprudencial os conteúdos normativos exarados pelos arts. 20, 23 e 24:
Considerada uma valiosa garantia constitucional, a obrigatoriedade de fundamentação tem por escopo propiciar o exercício do devido processo legal, permitindo às partes a compreensão das razões que formaram o livre convencimento motivado, inclusive para fins de controle por meio de recursos cabíveis. Se a motivação é requisito indispensável a todos os pronunciamentos sejam judiciais ou administrativos, torna-se ainda mais relevante quando envolve situações de alteração de jurisprudência com a necessária modulação dos efeitos.
Apesar de o objetivo da redação do art. 20 da LINDB ser evitar que conceitos principiológicos abstratos sejam utilizados para afastar a aplicação de regras jurídicas aos fatos narradas no processo15, referido dispositivo vem sendo suscitado para amparar alegações consequencialistas em âmbito processual. Nesse sentido, alerta Humberto Ávila16 que o consequencialismo é um mecanismo de argumentação adotado pelo intérprete para alterar o Direito conforme os resultados práticos que almeja afastar ou estimular, em prejuízo à estrutura normativa diretamente aplicável.
Em diversas ações julgadas favoráveis aos interesses do contribuinte, sob a sistemática dos repetitivos, a Fazenda Pública tem se utilizado de pretextos consequencialistas para requerer a atribuição de efeitos prospectivos a tais decisões que consolidaram novo entendimento sobre determinada matéria tributária. Seu pedido se estende até mesmo para as ações já ajuizadas por contribuintes para repelir a exação tributária sob o fundamento de causar grande abalo aos cofres públicos.
Por exemplo, nos Embargos de Declaração opostos no RE 714.139 – Tema 745, no qual decidiu-se acerca da aplicação do princípio da seletividade para a cobrança de ICMS incidente sobre operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação, o Colégio Nacional de Procuradores aduziu sobre a inviabilidade orçamentária para restituição de valores a contribuintes que ajuizaram ações até a data do início do julgamento de mérito17.
No que diz respeito aos contribuintes, o cenário não é muito diferente. Igualmente há invocação do consequencialismo jurídico como forma de respaldar o pleito pela eficácia lançada pro futuro, com efeitos ex nunc às decisões modificadoras de jurisprudência, sustentado no súbito aumento das despesas tributárias das sociedades empresárias, em flagrante atentado à ordem econômica do país.
Em razão da drástica e abrupta alteração jurisprudencial pela “incidência de contribuição social, a cargo do empregador sobre os valores pagos ao empregado a título de terço constitucional de férias gozadas”, o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), exercendo seu papel de amicus curae no RE 1.072.485 – Tema 985, ressaltou a importância da modulação dos efeitos prospectivos da decisão paradigma diante dos impactos da
exigência tributária na folha de pagamento de pequenas, médias e grandes empresas brasileiras18.
Argumentos, nesse sentido, não raras vezes, têm provocado Ministros do STF a decidirem a partir de conjecturas sobre a consequência nas contas públicas da declaração de inconstitucionalidade de determinadas leis. A título exemplificativo, no julgamento do RE 718.874 – Tema 669, por meio do qual fixou-se a tese pela constitucionalidade da contribuição social do empregador rural pessoa física, instituída pela Lei 10.256/2001 (LGL\2001\295), incidente sobre a receita bruta obtida com a comercialização de sua produção, o Ministro Gilmar Mendes teceu considerações a esse respeito:
“Só estou querendo compartilhar esse nível de angústia porque, de fato, mandamos o Estado devolver um dinheiro que ele não tem e fala-se, impropriamente, em enriquecimento ilícito. Então, há problemas que precisam de ser discutidos, talvez até a redução da fórmula de preclusão, ao invés de cinco anos, dois ou um ano. Enfim, tem-se de repensar esse modelo, porque vivemos de instabilidade em instabilidade. Veja que se faz um esforço para economizar quarenta bilhões e nós, em uma assentada, podemos confirmar dispêndios de oitenta bilhões, ou não entrada de receita de oitenta bilhões. Por isso que se falou – mas hoje parece que isso está mais pronunciado, superlativamente pronunciado – no famoso manicômio tributário. Hoje, com a jurisdição constitucional nesse potencial, isso se torna muito mais pronunciado, muito mais evidente.”
Deveras, o consequencialismo pode ser invocado como forma de demonstrar os impactos econômico-financeiros ao jurisdicionado afetado pela nova orientação jurisprudencial. No entanto, deve o julgador ficar atento para não decidir sob um viés exclusivamente pragmático, preocupando-se tão somente com as peculiaridades do caso concreto em detrimento de princípios e normas jurídicas garantidoras de direitos fundamentais do contribuinte.
Quanto ao art. 23 da LINDB, o legislador ordinário prescreve o estabelecimento de “regime de transição” para as novas obrigações decorrentes de alteração interpretativa de norma de conteúdo indeterminado. Em verdade, todas as normas jurídicas são dotadas previamente de conteúdo impreciso, cabendo ao intérprete do Direito atribuir significado a tais enunciados que, a despeito de ter que respeitar os limites já preestabelecidos pela Carta Republicana, resulta, por diversas vezes, em divergências interpretativas.
Não parece ser razoável prejudicar o cidadão que, a despeito de ter respaldado suas condutas presentes em orientação já exarada pelo próprio Poder Público, depara-se, posteriormente, com decisão inovadora da ordem jurídica conferindo sentido normativo diametralmente oposto ao anterior e, por via de consequência, impondo nova obrigação ou condicionando o exercício de direitos.
Diante dessas mudanças de condão interpretativo, o art. 23 assegura “regime de transição”, que, segundo as
explicações de Floriano de Azevedo Marques Neto19, se assemelharia à ideia de uma modulação de efeitos ou de um diferimento temporal da aplicação da nova regra e cuja finalidade é evitar surpresas indevidas, devendo os efeitos repercutir de modo proporcional, equânime e em prol dos interesses gerais.
No julgamento do EDcl no REsp 1.630.659/DF, o STJ entendeu pela distinção entre o “regime transacional” previsto no art. 23 da LINDB e a modulação de efeitos disciplinada no art. 927, § 3º, do CPC/15 (LGL\2015\1656): enquanto a primeira regra veda a imposição de ônus aos sujeitos atingidos pela mudança de interpretação, a segunda encontrar-se-ia no campo da proteção da confiança, visto que a alteração jurisprudencial fere a expectativa legítima de atuação dos jurisdicionados20.
Apesar da distinção suscitada pelo STJ, na prática, o “regime de transição” equipara-se à modulação de efeitos, talvez com abrangência ainda mais ampla.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, é possível encontrar acórdãos da 18ª Câmara de Direito Público nos quais já houve a aplicação do disposto no art. 23 da LINDB em atenção ao sobreprincípio da segurança jurídica, atribuindo-se efeitos prospectivos às decisões julgadas sob o rito dos repetitivos.
Em sede de agravo de instrumento, reconheceu-se a ilegitimidade da parte agravante (promitente vendedor) sob o fundamento de que a tese fixada no Tema Repetitivo 12221 do STJ não poderia ser aplicada automaticamente ao caso concreto, uma vez que o bem imóvel teria sido compromissado à venda em 05.03.2001 e a publicação do precedente teria ocorreu em 18.06.2009.
“Agravo de Instrumento. Execução Fiscal. Taxa de Coleta de Lixo e Imposto Predial Urbano dos exercícios de 2016 a 2018. Decisão que rejeitou a exceção de pré-executividade em que alegada a ilegitimidade passiva. Insurgência da coexecutada/excipiente. Pretensão à reforma. Acolhimento. Distinção entre os compromissos de compra e venda comprovadamente firmados antes e depois da publicação dos acórdãos proferidos nos Recursos Especiais Representativos de Controvérsia n. 1.111.202 e 1.110.551. Ponderação fundada nos Princípios da segurança jurídica, da razoabilidade, das exigências do bem comum e da prudência. Inteligência do art. 23 da LINDB. Ciência da municipalidade a respeito da alienação do imóvel. Precedentes desta E. Câmara de Direito Público. Ilegitimidade da agravante. Ocorrência. Decisão reformada. Recurso provido.”22
Nos autos de um recurso apelatório com remessa necessária, restou decidido que, em observância à previsibilidade decorrente da segurança jurídica, a tese fixada no Tema de Repercussão Geral 30023 do STF – referente à incidência de ISS sobre contratos de franquia – somente poderia ser aplicada a fatos geradores ocorridos após a publicação do acórdão paradigma, consoante ementa colacionada a seguir:
“Ação Declaratória de Inexistência de Relação Jurídico-Tributária c.c Repetição de Indébito, Tutela de Urgência e Depósito Mensal das Parcelas de ISS. Franquias. Sentença que julgou procedente a ação para declarar a inexistência de relação jurídico-tributária que obrigue a parte autora ao recolhimento de ISS sobre contratos de franquia, condenando a requerida à repetição de indébito dos valores eventualmente pagos pela autora a esse título, nos cinco anos anteriores à data da propositura da ação, com juros e correção monetária na forma especificada. Pretensão à reforma. Acolhimento em parte. Franquia. Precedente vinculante horizontal do TJSP que reconheceu a inconstitucionalidade da inserção da franquia como atividade sujeita ao ISS. Recente julgamento do Tema 300 de Repercussão Geral. Precedente vinculante vertical do C. STF que, sob a luz da segurança jurídica, deve ser aplicado para fatos geradores ocorridos após a publicação do acórdão daquele C. Tribunal Superior. Inteligência do art. 23 da LINDB. Juros moratórios que somente são devidos após o trânsito em julgado da sentença ou acórdão proferidos na fase de conhecimento do processo. Honorários advocatícios. Princípios da causalidade e da razoabilidade, de forma que cada uma das partes deve suportar os honorários do seu advogado e metade das despesas processuais. Recursos oficial e voluntário de apelação providos em parte.”24
Dessa forma, não há dúvidas de que a regra de transição trazida pelo art. 23 da LINDB serve como mecanismo de estabilização do Direito diante das constantes mudanças de padrões hermenêuticos que podem resultar em novas obrigações e deveres aos administrados/jurisdicionados em inegável insegurança jurídica.
Igualmente, o art. 24 da LINDB impõe regramento relativa à irretroatividade da nova interpretação com o fim específico de preservar as situações plenamente constituídas sob a sua égide. Esse enunciado normativo visa à garantia de um grau mínimo de calculabilidade ao jurisdicionado mediante a revisão de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa.
Não obstante a importância do referido enunciado para o âmbito do direito tributário decorrente das oscilações interpretativas do texto positivado, o Conselho de Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) consolidou entendimento pela inaplicabilidade do art. 24 da LINDB ao processo administrativo tributário sob o fundamento de que os destinatários do decreto-lei seriam apenas os administradores públicos e os órgãos de controle, resultando na aprovação da edição da Súmula 16925.
Ocorre que a posição adotada pelo CARF vai de encontro aos propósitos estipulados pelo legislador ordinário com a edição da Lei 13.655/2018 (LGL\2018\3430). Isso porque as normas incluídas na LINDB têm natureza claramente interpretativa, possuindo aplicação em todas as esferas do Direito, inclusive, na seara tributária, uma vez que não
interferem diretamente na natureza dos tributos, prescindindo de lei complementar26.
O intuito do art. 24 é proibir que o órgão decisório dê aplicação retroativa à nova corrente interpretativa sobre a legislação tributária para o fim de atingir fatos e relações jurídicas preteritamente solidificadas. Essa vedação não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, estando disciplinada inclusive no art. 2º, parágrafo único, XIII, da Lei 9.784/1999 (LGL\1999\107)27 e no art. 146 do próprio Código Tributário Nacional28.
Referido dispositivo legal veio apenas reafirmar um regramento que, a despeito de já existir, por muitas vezes não é respeitado pelos órgãos julgadores, o que acaba gerando verdadeira instabilidade jurídica para os administrados.
Dessa feita, resta claro que os arts. 20, 23 e 24 da LINDB são primordiais à regulação e à aplicação das normas jurídicas em matéria de direito público, tendo por objetivo precípuo a preservação do princípio da segurança jurídica, atribuindo maior solidez às decisões e permitindo que o contribuinte tenha maior confiança na Administração Tributária e no Poder Judiciário.
Conforme visto, o efeito vinculante dos pronunciamentos jurisdicionais ganhou ainda mais força com a edição do CPC/15 (LGL\2015\1656). A nova sistemática de precedentes impôs aos membros do Poder Judiciário observância obrigatória a ratio decidendi, que corresponde ao resultado da norma jurídica geral advinda da prolação da decisão judicial. Trata-se de medida para uniformização da jurisprudência em prol da estabilidade do Direito, evitando-se, com isso, surpresas indesejáveis aos jurisdicionados e à própria Administração Pública.
Sobre a intrínseca relação existente entre os precedentes judiciais e o princípio da proteção da confiança, Luiz Guilherme Marioni29 assevera que:
“Quando os precedentes ou a jurisprudência consolidada são levados a sério, a sua estabilidade requer especial cuidado. Isso porque, como chega a ser intuitivo, a revogação de jurisprudência consolidada pode causar surpresa injusta a todos aqueles que nela pautaram suas condutas. Daí por que é imprescindível, na lógica jurídica estribada na autoridade e na obrigatoriedade dos precedentes, atentar para os efeitos da decisão revogadora de precedentes ou de jurisprudência consolidada […]. Quando nada indica provável revogação de um precedente, e, assim, os jurisdicionados nele depositam confiança justificada para pautar suas condutas, entende-se que, em nome da proteção da confiança, é possível revogar o precedente com efeitos puramente prospectivos (a partir do trânsito em julgado) ou mesmo com efeitos prospectivos a partir de certa data ou evento.”
No que diz respeito ao tema dos precedentes vinculantes, o STF assume papel de extrema importância por ser considerado o guardião da Constituição. Entre suas principais funções, além de exercer o controle de constitucionalidade, é responsável pelo julgamento dos recursos extraordinários interpostos pelas partes litigantes, nos quais as decisões judiciais ali proferidas são dotadas de eficácia inter partes e erga omnes.
Em virtude disso, a drástica e abrupta alteração de jurisprudência pressupõe a necessidade de adequada e específica fundamentação e, ainda, de modulação dos efeitos da nova decisão em cumprimento aos preceitos do art. 927, §§ 3º e 4º do CPC/15 (LGL\2015\1656).
Em Sessão Plenária realizada no dia 15.03.2017, nos autos do RE 574.706/PR – Tema 69, o STF firmou a seguinte tese jurídica: “O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins”.
Conforme assinalado pela Ministra Relatora Cármem Lúcia, a parcela correspondente ao ICMS pago ao ente federativo não tem natureza de faturamento ou receita, mas sim de mero ingresso de caixa, uma vez que tal quantia não é incorporada ao patrimônio do contribuinte, destinando-se aos cofres públicos dos Estados-Membros e do Distrito Federal30.
Ocorre que, ao assim proceder, o STF modificou a jurisprudência dominante há mais de duas décadas, contrariando o teor da Súmula 68 do STJ, segundo a qual: “A parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do PIS”.
Diante dessa virada jurisprudencial, a Fazenda Nacional opôs Embargos de Declaração pleiteando a modulação dos efeitos sob o argumento de nociva “reforma tributária com efeitos retroativos”.
Apenas em sessão virtual de 13.05.2021, o STF houve por bem modular os efeitos do julgado decidindo que sua produção teria início após 15.03.2017 – data em que julgado o paradigma e fixada a tese com repercussão geral – ressalvando as ações judiciais e administrativas protocoladas até a data da sessão de julgamento.
Outro tema controvertido diz respeito ao RE 1.072.485/PR – Tema 985. Apesar de o STF sempre ter tido a compreensão de que a discussão sobre a natureza jurídica de verbas trabalhistas, se remuneratórias ou indenizatórias, estaria restrita ao âmbito infraconstitucional, em momento posterior, para a surpresa da comunidade jurídica, acabou por reconhecer a repercussão geral da matéria e, em 31.08.2020, julgou o mérito do referido recurso extraordinário.
Superando a então pacífica jurisprudência do STJ ratificada no julgamento do Resp. 1.230.957 – Tema Repetitivo
47831, o STF fixou a tese de que “é legítima a incidência de contribuição social, a cargo do empregador, sobre os valores pagos ao empregado a título de terço constitucional de férias gozadas”.
Diante do impacto que a nova orientação pode causar no âmbito jurídico-processual e em diversos setores econômicos, foram opostos Embargos de Declaração pela parte contribuinte e por 4 (quatro) amici curiae (CSPB, IBDP, IBPTE e ABAT) com o objetivo de fixar a modulação dos efeitos da decisão paradigma.
O placar estava em 5×4 a favor da modulação para valer o acórdão de mérito tão somente a partir da publicação da ata de julgamento em 15.09.2020, ressalvadas as contribuições já pagas e não impugnadas judicialmente até a mesma data, que não seriam devolvidas pela União.
Referido julgamento, porém, foi suspenso por pedido de destaque do Ministro Luiz Fux, com o deslocamento dos debates no âmbito do Plenário Virtual para sessão presencial, sem previsão de data para julgamento.
Tendo em vista os desafios processuais enfrentados com o julgamento de mérito dos Temas 69 e 985, não há dúvidas de que a morosidade na definição da modulação dos efeitos do acórdão paradigma gera graves implicações no bojo dos processos vinculados à matéria tributária submetida à repercussão geral.
Isso acontece mais especificamente porque, após a publicação do acórdão paradigma, sucedem duas situações:
Todavia, ao deixar de aguardar a modulação dos efeitos da decisão modificadora de jurisprudência dominante, o Tribunal de origem acaba por realizar uma adequação jurisprudencial prematura, comumente, sem adentrar às peculiaridades do caso concreto.
É esse o procedimento que vem sendo majoritariamente adotado pelas Turmas julgadoras do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF 3ª Região):
“[…] 2. Não há necessidade de aguardar o julgamento dos Embargos de Declaração opostos no RE 574.706/PR, uma vez que o art. 1.040, inc. II, do CPC/15 (LGL\2015\1656) determina o sobrestamento do feito somente até a publicação do acórdão paradigma, já ocorrido na espécie. 3. Não houve orientação específica de sobrestamento dos feitos que versem sobre a mesma matéria, nas instâncias ordinárias e, como asseverado no decisum monocrático, o art. 1.040, inc. II, do CPC/2015 (LGL\2015\1656) determina o sobrestamento do feito somente até a publicação do acórdão paradigma, sem necessidade de aguardar-se o trânsito em julgado. Nesse sentindo são os inúmeros precedentes emanados do Excelso Pretório, dentre eles a decisão proferida na Reclamação n° 30.996-SP (DJ-e 13.08.2018) e o Agravo no RE n° 930.647-PR (DJ-e 08.04.2016) […] 6. Analisando os fundamentos apresentados pelas agravantes não identifico motivo suficiente à reforma da decisão agravada. Não há elementos novos capazes
de alterar o entendimento externado na decisão monocrática. 7. Agravo interno improvido.”34
Nas hipóteses de automática aplicação do acórdão que altera repentinamente entendimento jurisprudencial, a parte surpreendida com a nova tese jurídica firmada pode vir a sofrer graves prejuízos econômico-financeiros em decorrência da ausência de modulação dos efeitos do acórdão paradigma. De um lado, o ente federativo poderá vir a ter que desembolsar grandiosa quantia para restituição daqueles que pagaram tributo considerado posteriormente inconstitucional, ao passo que, de outro lado, o contribuinte terá de quitar ou depositar exigência tributária que anteriormente era indevida, sob pena de seu nome ser incluído no cadastro de devedores e o débito ser inscrito em dívida ativa para posterior ajuizamento de execução fiscal.
Para se evitar situações como essa, há medidas que poderiam ser mais apropriadas, em respeito aos enunciados normativos que privilegiam a irretroatividade da decisão judicial impositora de novas obrigações ao jurisdicionado, à segurança jurídica e à proteção da confiança relativa aos contribuintes.
Primeira medida: ainda que o STF não tenha expressamente determinado a suspensão de todos os processos vinculados à matéria na forma dos artigos 1.035, § 5º35, e 1.037, II36, do CPC/15 (LGL\2015\1656), o julgador, diante das particularidades do caso concreto e do poder geral de cautela37, está autorizado a suspender momentaneamente tanto o julgamento de mérito dos processos vinculados ao tema repetitivo quanto o juízo de retratação por inexistência
de paradigma (completo) para efeitos dos artigos 1.030, II, e 1.040, II e III, do CPC/15 (LGL\2015\1656), ou, ao menos restringir a sua eficácia, até vir a ser modulada a tese jurídica.
Nesse seguimento, a Vice-Presidência do TRF da 3ª Região já reconheceu a necessidade de se aguardar o julgamento de embargos aclaratórios, no caso do RE 574.706 (Tema 69), para modulação de efeitos da decisão lançada em repetitivo. Para a Relator Consuelo Yoshida, a paralização temporária não caracteriza ofensa aos princípios da celeridade processual e da razoável duração do processo, mas prestigia a segurança jurídica e da efetividade da prestação jurisdicional:
“[…] 1. A ausência de determinação específica do STF para a suspensão do processamento de todos os processos pendentes em âmbito nacional (art. 1.035, § 5º, do CPC (LGL\2015\1656)) não impõe à Vice-Presidência a apreciação imediata dos recursos que versem sobre o tema. 2. Como regra, a teor do que dispõe o art. 1.040 do CPC (LGL\2015\1656), a retirada do processo da condição de sobrestado para realização do juízo de conformidade ou adstrição à tese definida em recurso repetitivo ou de repercussão geral é feita a partir da publicação do acórdão pelo Tribunal Superior, quando, então, os fundamentos que alicerçam o julgamento paradigmático tornam-se conhecidos, compreendendo-se, assim, o efetivo alcance da tese jurídica e o seu impacto no caso concreto. 3. Entretanto, há situações pontuais em que, por segurança jurídica e pela própria efetividade da prestação jurisdicional, pode-se decidir pelo aguardo do julgamento de embargos declaratórios e/ou pela modulação de efeitos da decisão lançada no repetitivo. 4. A situação retratada na hipótese tem gerado grande controvérsia a respeito do momento adequado para o levantamento do sobrestamento e aplicação dos efeitos do precedente vinculante. 5. Como mencionado na decisão desta Vice-Presidência que sobrestou o presente feito, os embargos de declaração opostos pela União contra o acórdão proferido no RE 574.706, por meio do qual se objetiva a modulação de efeitos do julgamento de mérito desse recurso, estão pendentes de análise pelo Plenário daquela Corte. 6. Em recentes decisões, o Supremo Tribunal Federal tem sinalizado pela necessidade de se aguardar o julgamento dos embargos de declaração opostos no RE 574.706, por entender que eventual modulação de efeitos da orientação adotada justifica o sobrestamento do julgamento do recurso excepcional até a solução definitiva da matéria […]. 9. Essas decisões prestigiam o princípio da segurança jurídica e consideram razões de política judiciária e a perspectiva da prestação jurisdicional mais efetiva, já que são imensos os impactos gerados sobre a força de trabalho nos tribunais e sobre a comunidade jurídica como um todo, decorrentes da possibilidade de modificação dos efeitos do precedente vinculante, pela via dos embargos de declaração que visam à modulação.
Segunda medida: na hipótese de o STF decidir pela não modulação, o Tribunal de origem estaria autorizado, a partir das especificidades do caso concreto e das consequências práticas decorrentes de eventual retroatividade, atribuir efeitos prospectivos ao novo precedente, a fim de preservar as situações que foram plenamente constituídas com base em interpretação dominante à época.
Não obstante a posição anteriormente defendida, a Primeira Turma Recursal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região manifestou-se no sentido de que a modulação por juízo diverso daquele que deu origem ao precedente vinculante resultaria usurpação da competência, abrindo-se brechas para o rejulgamento da matéria:
“Processual civil e constitucional. Embargos de declaração. Solução da causa definida com base em precedente vinculante do STF. IPI na importação de veículo por pessoa física. Esgotamento do tema constitucional para a jurisdição ordinária. Inexistência de omissões constitucionais no acórdão embargado. Nova tese constitucional. Modulação dos efeitos. CPC/15 (LGL\2015\1656), Art. 927, § 3º. Providência Facultativa. Embargos Rejeitados. Relatório. A Autora, no acórdão que reconheceu a incidência do IPI em importação de veículo novo por pessoa física, e que se amparou no RE 723.651, alega omissão do julgado que por não ter enfrentado questões atinentes à segurança jurídica, boa-fé, confiança legítima e irretroatividade da norma tributária em relação à modulação dos efeitos da decisão. Em contrarrazões o Embargado pugnou pela ausência dos vícios apontados. Voto. O acórdão embargado amparou-se em solução definitiva da matéria em sede de jurisdição constitucional, e com efeito vinculante, não cabendo neste Juízo a ponderação de argumentos que, a rigor, não decorrem do acórdão embargado, mas sim, do acórdão do próprio Supremo Tribunal Federal, pelo que não cabe reconhecer-se a omissão apontada. Admitir-se tal hipótese seria rediscutir, na jurisdição ordinária, a tese constitucional definida pelo Supremo Tribunal Federal, o que não guarda lógica com a repartição de competência jurisdicional definida pela Constituição Federal. E quanto à modulação dos efeitos no RE 723.651, não houve tal solução naquele julgado, conforme vê-se de seu próprio acórdão publicado no DJe 164, 05/8/2016, pelo que não caberia ao acórdão ora embargado tratar a respeito. Avançar neste ponto, seria usurpar a competência constitucional do STF. E nem mesmo a previsão inserta no § 3º, do artigo 927, do CPC/15 (LGL\2015\1656) atrai tal modulação a juízo diverso do qual se originou o precedente vinculante sob pena de, por via transversa, se afastar tanto a vinculação do acórdão paradigma como a própria autoridade do conteúdo material que dele decorre, abrindo-se brecha para o rejulgamento da matéria, inclusive com o risco de se contrariar a solução definitiva e vinculante que fora dada. De mais a mais, no RE 593.849, em recente acórdão publicado em 08/11/2017, o Pleno do e. STF assentou que “6. Não há contradição na modulação de efeitos da decisão recorrida realizada, pois se trata de faculdade processual conferida ao STF, em caso de alteração da jurisprudência dominante, condicionada à presença de interesse social e em prol da segurança jurídica. Não há, então, relação de causalidade entre a mudança de entendimento jurisprudencial e a adoção da técnica de superação prospectiva de precedente (prospective overruling). Art. 927, § 3º, do CPC (LGL\2015\1656). 7. O comando dispositivo do acórdão detém densidade suficiente para a satisfação executiva da pretensão deduzida em juízo, sendo assim o montante e as parcelas devidas ultrapassam o âmbito de cognoscibilidade do recurso extraordinário e de conveniência da sistemática da repercussão geral.” – grifei. Assim, e com a devida venia, os presentes Embargos bem traduzem a irresignação da parte com a solução dada à causa, não sendo a presente via recursal, porém, adequada a tal intento. Embargos de Declaração Rejeitados.”39
Esse entendimento de que não há competência do Tribunal de origem para, no caso concreto, modular os efeitos de decisão proferida em sede de repercussão geral, que venha alterar radicalmente precedente dominante, quando o STF assim não o faz no processo condutor, não se compatibiliza com o disposto no art. 927, § 3º, do CPC/15 (LGL\2015\1656) e os artigos 20, 23 e 24 da LINDB.
Com efeito, conclusões no sentido de que não compete aos tribunais de origem ponderar circunstancialmente a repercussão de uma decisão proferida em sede de repercussão geral desconsideram que a modulação de efeitos é uma regra de observância obrigatória e não uma mera faculdade do Poder Judiciário.
Dessa forma, a intepretação e aplicação dos comandos emanados pelos artigos 1.030, II, e 1.040, II, do CPC/15 (LGL\2015\1656) não pode se dar maneira estanque, desconsiderando-se o sistema normativo em sua completude. Devem os julgadores se atentar para i) a regra do art. 927, § 3º, do CPC/15 (LGL\2015\1656) que viabiliza a modulação dos efeitos da alteração jurisprudencial pelos Tribunais Superiores e de Origem e, até mesmo, pelos próprios magistrados de primeira instância, bem como ii) os dispositivos que privilegiam a confiança depositada pelos jurisdicionados nos precedentes judiciais, tais como: ii. os artigos 20, 23 e 24 da LINDB, que versam sobre a atividade interpretativa no âmbito do direito público.
Em última instância, a atividade judicante, nessas circunstâncias, deve observar o art. 5º, XXXVI e LV, da CF/88 (LGL\1988\3) relativo aos princípios da segurança jurídica, irretroatividade geral e devido processo legal, de modo a garantir uma prestação jurisdicional justa, equânime e atenta aos interesses de toda coletividade.
No âmbito jurídico, a atividade interpretativa consiste em construir o sentido e o alcance dos enunciados prescritivos, em plena sintonia com valores que são positivados na forma de princípios jurídicos. Apesar de encontrar balizar no texto constitucional, torna-se necessário estabelecer limites à interpretação do Direito.
Com a edição do CPC/15 (LGL\2015\1656), a sistemática de precedentes vinculantes ganhou ainda mais força, cabendo aos Tribunais uniformizar e manter estável, íntegra e coerente a jurisprudência por eles consolidada, na medida em que cria expectativa de conduta presente, ou seja, o jurisdicionado passa a pautar suas condutas com base nos comandos jurídicos determinados pelo Poder Judiciário.
No contexto do direito tributário, a modulação de efeitos de alteração jurisprudencial mostra-se de suma relevância tanto para os contribuintes quanto para o próprio ente federativo, uma vez que a eficácia retroativa do acordão proferido sob o rito dos repetitivos poderá causar consequências jurídicas extremamente gravosas.
A despeito de a práxis jurídica ser pela aplicação imediata da decisão paradigma, em nítido prejuízo aos processos vinculados à tese jurídica, a adoção do método sistemático aparece como ferramenta útil para a intepretação dos artigos 927, § 3º, do CPC/15 (LGL\2015\1656) e 20, 23 e 24 da LINDB que privilegiam os princípios constitucionais da segurança jurídica, da irretroatividade e da proteção à confiança.
Dessa forma, considerando os desafios processuais enfrentados com o julgamento dos Temas de Repercussão Geral 69 e 985, referentes à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins e à incidência de contribuição social sobre o terço constitucional de férias, respectivamente, foi possível concluir pela viabilidade de o Tribunal de origem modular os efeitos do novo precedente para a preservação das situações plenamente constituídas a partir da interpretação dominante à época, quando o STF assim não o faz.
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Estados, a cifra de bilhões de reais. Ou seja, além de a tese definida no julgamento afastar uma expressiva receita constitucional, legal e legítima dos entes federativos, impõe, ainda, uma despesa bilionária ao estabelecer marco temporal retroativo para aplicação da tese. Nesses temos, o reconhecimento da necessidade de modulação dos efeitos da decisão – em razão do impacto nas finanças dos Estados, da edição de leis pelos Estados, das expectativas de geração de receitas, da preservação do exercício financeiro e das repercussões relevantes nas contas públicas –, denota que a tese seja apenas aplicada no marco temporal prospectivo, sem retroação, com o que, além de se evitar a desorganização orçamentária-financeira-administrativa dos entes federativos que, em última ratio, protege e possibilita a prestação de serviços públicos essenciais, evita-se também a anunciada tragédia da justiça”.
EDcl no REsp 1.630.659/DF, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 27.11.2018, DJe 06.12.2018).
título) do imóvel quanto seu proprietário/promitente vendedor (aquele que tem a propriedade registrada no Registro de imóveis) são contribuintes responsáveis pelo pagamento do IPTU.”
25 .O art. 24 do Decreto-lei 4.657, de 1942 (LGL\1942\3) (LINDB), incluído pela Lei 13.655, de 2018 (LGL\2018\3430), não se aplica ao processo administrativo fiscal. (Vinculante, conforme Portaria ME 12.975, de 10.11.2021, DOU de 11.11.2021). Acórdãos Precedentes: 1402-004.202, 9101-004.217, 9101-003.839, 1302-003.821, 9202-007.943, 3302-
007.542, 1401-003.632, 3401-007.043 e 1201-002.982.
Estados, deve ser enfatizado que não há como se excluir a transferência parcial decorrente do regime de não cumulatividade em determinado momento da dinâmica das operações. 4. Recurso provido para excluir o ICMS da base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins” (STF, RE 574706, rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j.
15.03.2017).
Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma: […] II – o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na origem, reexaminará o processo de competência originária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente julgado, se o acórdão recorrido contrariar a orientação do tribunal superior.
suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão
e tramitem no território nacional.
36 .Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto
do caput do art. 1.036, proferirá decisão de afetação, na qual:[…] II – determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional […].
37 .Arts. 300 e ss., 995, parágrafo único, 1.026, § 1º, do CPC/15 (LGL\2015\1656).