Maria Ângela Lopes Paulino Padilha
Doutora e Mestre pela PUC-SP. Professora do IBET. Advogada
Lucas Galvão de Britto
Doutor e Mestre pela PUC-SP. Professor do IBET e da PUC-SP. Advogado
Exame crítico analítico das manifestações das administrações tributárias e decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a caracterização da natureza jurídico-tributária de contratos de software. O trabalho evidencia inconsistências no modo as autoridades caracterizam o conceito jurídico de software, dificultando a previsibilidade das incidências tributárias nos negócios jurídicos que os envolvem. Por fim, aponta para que as decisões recentes do STF de mandarão especial atenção das autoridades administrativas federais para adaptar seus posicionamentos anteriores de modo a melhor refletir os ajustes conceptuais firmados por aquelas decisões.
Palavras-chave: Software – Natureza jurídica – Competência tributária – Mercadoria – Serviço – Royalties
This paper aims to produce a critical analysis of Brazilian tax administrations reasonings and recent Supreme Court decisions regarding legal characterization of software contracts. Our research points out that there are many inconsistencies in the way authorities recognize the legal aspects of software consequently making it hard to predict the taxation of many contracts that involve it. Finally points out that recent Supreme Court decisions will require special attention from Federal Tax Authorities to adapt their past reasonings to better reflect the current legal framework set by those rulings.
Keywords: Software–Legal concept–Tax jurisdiction–Goods–Services–Royalties
Para citar este artigo: PADILHA, Maria Ângela Lopes Paulino; e BRITTO, Lucas Galvão de. Tributação das transações de software segundo as autoridades tributárias e o STF. Revista de Direito e as Novas Tecnologias. vol.
20. ano 6. São Paulo: Ed. RT, jul./set. 2023. Disponível em: inserir link consultado. Acesso em: DD.MM.AAAA. DD.MM.AAAA.
1. Introdução – 2.Anatureza jurídica do software – 3. Contratos sobre software: desenvolvimento e licenças – 4. Licençasdeusodesoftware-5.AdistribuiçãodecompetênciasnoSistemaTributárioBrasileiro,adicotomiaserviçoe mercadoria,opapeldaleicomplementareafunçãodoart.110doCTN-6.Asprimeirasdecisõessobretributaçãode software – 7.Apretensão dos Estados e Municípios: a insegurança e a judicialização na tributação do software – 8. Uma terceira via: a competência residual – 9.Atributação do software no âmbito federal: confirmação da insegurança
jurídica-10.OentendimentomaisrecentedoSTFsobreatributaçãodosoftware27-11.Conclusão-12.Referências bibliográficas – 13. Legislação – 14. Jurisprudência
O panorama jurídico-tributário sobre as operações com software sempre foi repleto de inconsistências nos três âmbitos – federal, estadual e municipal –, que acabaram por implicar controvérsias que afetaram significativamente as condutas adotadas pelas empresas que fazem negócios cujo objeto é o software.
Em muitas oportunidades, as interpretações adotadas pelas administrações fiscais valem-se de fundamentos contraditórios para implementar regimes jurídicos mais vantajosos às pretensões fiscais. Várias das questões decorrentes desses embates escalaram para o Poder Judiciário.
A intenção do presente artigo é justamente oferecer subsídios para que se possa identificar o tratamento tributário que deve ser administrado ao software, levando em conta a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal.
A Lei 9.609/1998 (LGL\1998\77), em seu art. 1º1, atribui ao software a natureza de bem intangível, que não se confunde com o suporte físico que o veicula, consistindo em propriedade intelectual sujeita à disciplina própria dos direitos de autor.
Não é demais relembrar que o software, como qualquer bem, jamais será objeto de tributação per se. Por força do princípio da capacidade contributiva, somente se admite a incidência de tributos sobre condutas que revelem riqueza, o que, no caso do software, somente ocorre quando praticado algum negócio jurídico que o tenha por objeto. Para dizê-lo com outras palavras, juridicamente, tributos não incidem sobre software, mas sobre os negócios feitos com software.
A ressalva tem consequências práticas imediatas: diferentes contratos sobre um mesmo software podem receber tratamentos tributários distintos. Daí porque, para examinar a tributação, é preciso ir além da caracterização do programa de computador em si e identificar as respectivas modalidades contratuais reconhecidas pela legislação brasileira. Só então teremos firmadas boas bases para prosseguir com o exame das respectivas incidências.
De início, importa divisar os contratos sobre softwares entre aqueles que têm por objetivo: produzir um novo software e outros que regulamentam o uso de um software já elaborado. Os primeiros são usualmente denominados contratos de desenvolvimento, ao passo que os segundos costumam ser chamados de licenças.
Nocontratodedesenvolvimento,oobjetodacontrataçãoconsisteemelaborarumsoftware,sendonegociadoum
fazer.Nessamodalidadecontratual,osdireitossobreoprogramadecomputadorpertencem,salvodisposiçãoem
contrário,aocontratante(art.4ºdaLei9.609/1998(LGL\1998\77)2),quepoderáutilizá-loparausoprópriooupara ulterior exploração econômica ante terceiros.
Já as licenças têm por objeto certos direitos patrimoniais sobre um softwarejá desenvolvido, mas não transacionam sua propriedade. Os termos de licença podem permitir que terceiros instalem, usem, modifiquem, reproduzam e até mesmo expeçam novas licenças a título gratuito ou oneroso.
Um traço muito relevante para seu estudo jurídico tributário é o de que as licenças não envolvem a transferência da propriedade intelectual. Nesses negócios, o programa licenciado permanece como propriedade de seu desenvolvedor (seu “autor”, nos termos do art. 2º) ou do contratante de seu desenvolvimento (art. 4º), direito que não se transmite ao licenciado.
A Lei 9.609/1998 (LGL\1998\77) distingue, nos arts. 9º a 11, a existência de três modalidades de licenças sobre programas de computador: (i) l. de uso; (ii) l. de direitos de comercialização (por vezes chamada no linguajar jurídico de l. de distribuição); e (iii) transferência de tecnologia.
Noscontornosdesteescrito,cuida-seapenasdelicençasdeuso.Dessemodo,importaráaopresenteexame aprofundarumpoucomaisnoscontornosdalegislaçãoparaessamodalidadecontratualprevistanoart.9ºdaLei
9.609/1998(LGL\1998\77)3.
Nos contratos de licença de uso, transfere-se ao licenciado o direito de utilizar as funcionalidades da aplicação em seu(s) equipamento(s). Esse direito será regulado mediante “termos de serviço” (ou “EULA”, acrônimo para a expressãoinglesa“EndUserLicenseAgreement”),estabelecidosentrelicenciadoeodesenvolvedor,quedeterminam prazos, condições para instalação, reprodução, modificações e outros aspectos relativos ao uso do programa negociado. Trata-se de modalidade contratual celebrada com os consumidores finais.
Em virtude do previsto no art. 8º da Lei 9.609/98 (LGL\1998\77), inclusive com base nas disposições do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90 (LGL\1990\40)), o licenciador do software fica obrigado a prover aos respectivos usuários a prestação de serviços técnicos relativos ao adequado funcionamento e uso do programa.
Referidos serviços técnicos podem compreender: (i) serviços de suporte sem custo adicional, prestados durante o prazo de validade técnica da versão contratada, ora relacionados à garantia do software para reparos de eventuais erros e defeitos gerados na concepção do programa, ora concernentes à orientação básica sobre o seu uso e funcionamentoconformemanuaiseespecificações;bemcomo(ii)serviçostécnicoscomplementares,passíveisde
remuneração,4 denominados usualmente de serviços de manutenção.
Os serviços de manutenção, prestados por meio de e-mails, telefonemas, acesso remoto ou até de visita de técnicos especializados,podemenvolverumagamadeatividades,taiscomoserviçosdetreinamentoeconsultoria;serviçosde recuperação de arquivos e de correções decorrentes do uso indevido do programa, de defeitos do próprio equipamento e do sistema operacional ou de falhas elétricas; serviços de migração e conversão de dados para outros equipamentos; e serviços destinados a atualizar o programa relativamente às variáveis operadas pelo programa – como índices financeiros, valores monetários e informações fiscais.
Na prática comercial, as condições e ajustes para a prestação dos serviços técnicos complementares podem representar uma cláusula no contrato de licença ou decorrer de instrumentos autônomos, que, aliás, são recomendáveis em casos de programas de alta complexidade. Independentemente das formas escolhidas, importa consignar que a prestação desses serviços, por estar contratualmente individualizada e cobrada à parte, acaba por revelarumaprestaçãodeimportânciaeconômicaprópriaeautônoma.Porenvolveremespecificidadenegocialprópria, aindaquevinculadosàlicençapropriamentedita,osserviçosdemanutençãoremuneradoscomelanãose
confundem, assumindo a licença e o serviço suportes fáticos de naturezas jurídicas díspares e, portanto, efeitosfiscais igualmente diversos.
Umapeculiaridadedosistematributárionacionalnoqueserefereàtributaçãosobreoconsumoéarelevânciada
distinção entre serviço e mercadoria. Enquanto essa distinção se mostra irrelevante em muitos países5, no Brasil ela foi utilizada como parâmetro constitucional para dividir competências entre Estados (ICMS recai sobre operações com mercadorias) e Municípios (o ISS recai sobre prestações de serviços), além de influir em importantes aspectos da quantificação de tributos federais.
Na aplicação dos tributos, sucedem situações em que pairam dúvidas sobre a caracterização de um negócio jurídico como circulação de mercadoria ou prestação de serviços. Esse tipo de conflito conduz a elevado grau de incerteza quantoàtributaçãodosoftwarenoBrasil.Observadasasprescriçõesdoart.1ºdaLei9.609/1998(LGL\1998\77),falta aos programas de computador a “corporeidade” das mercadorias e tampouco se vislumbra nas licenças a existência de uma “obrigação de fazer” para caracterizar um serviço.
Para mitigar conflitos interpretativos entre os sujeitos tributantes, a Constituição prevê competência para que o legislador nacional edite Lei Complementar que, entre outros temas, disporá sobre “conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (art. 146, I).
Nesse sentido, as leis complementares funcionam como mecanismos de calibração das competências dadas pela Carta, cuidando de evitar a superposição das potestades conferidas nos arts. 153, 155 e 156, à União, aos Estados e aos Municípios, respectivamente.
Em nossa ordem vigente, esse papel é exercido por um conjunto de leis complementares, entre as quais destacam-se o Código Tributário Nacional (“CTN (LGL\1966\26)”) e as Leis Complementares 87/96 (“LC 87/96 (LGL\1996\37)”) e 116/2003 (“LC 116/03 (LGL\2003\482)”), as quais disciplinam o ICMS e o ISS, nessa ordem.
Para ilustrar o caráter uniformizador que se espera dos comandos dessas normas, o art. 110 do CTN (LGL\1966\26) impõeaolegisladoreaosintérpretesodeverdenãoultrapassaroslimitesjáfirmadosnodireitoprivadosempreque
setratedeinterpretaroalcancedosconceitosutilizadosnaConstituição6.
Dessemodo,deve-seatentaràsdefiniçõesdalegislaçãoprivadaespecialmenteaointerpretarostermosmercadoriae
serviços,ambosexpressamenteutilizadosnaConstituiçãopararepartircompetências,comosepercebenosarts.155, II7, e 156, III8.
No passado, o STF consagrava a aplicação do art. 110 do CTN (LGL\1966\26), a exemplo de quando decidiu a respeito da inconstitucionionalidade do IOF sobre saque em conta de poupança, por não estar compreendido no conceito de operação de crédito ou de operação relativa a títulos ou valores mobiliários (RE 232.467-5), quando afastou a incidência da contribuição social sobre os valores pagos a autônomos e administradores, pois ampliava o conceito de “empregador” e da expressão “folha de salários” contidos no art. 195, I, da Constituição da República de 88 (“CR/88”), antes da redação conferida pela EC 20/98 (LGL\1998\68) (RE 166.772).
Vale mencionar o emblemático julgamento do RE 116.1219, que concluiu pela inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a locação de bens móveis (item 79 da lista anexa ao DL406/68).Alicerçados na preservação dos institutos de direito privado utilizados pelo constituinte na repartição das competências tributárias, concluíram os Ministros à época que somente as obrigações de fazer, caracterizadas juridicamente como o esforço humano de elaborar uma utilidade em favor de terceiro, qualificam-se como prestação de serviços passíveis de serem tributadas pelo ISS e que não se confundem com a definição civil de locação de bens móveis.
Pronunciamentos posteriores da Corte Suprema, porém, resistiram ao conceito de “prestação de serviços” empregado no direito privado ao argumento de que o art. 110 não há de exaurir a atividade interpretativa, podendo o direito tributárioadotarcritériospróprios.ÉcomosesucedeunoexamedatributaçãopelosMunicípiosnoscontratos
complexos de leasing financeiro (RE 592.90510) e nas atividades desenvolvidas pelas operadoras de planos de saúde (RE 651.70311).
Motivado em atualizar a linguagem jurídica para acomodar novas situações às normas de competência tributária, o STF assinalou que conceitos tributários não são imutáveis e fechados, mas caracterizados por grande fluidez e mutação quanto à sua natureza jurídica, devendo-se recorrer a outras ciências (como Finanças, Economia e Contabilidade) para melhor definir produtos e serviços resultantes da atividade econômica.
Sustentado nessas premissas, o STF aplicou um critério residual, segundo o qual é onerada pelo imposto municipal toda atividade econômica que não se enquadre como serviço tributável pelo ICMS ou como serviço financeiro e securitário sujeito ao IOF.
Mais recentemente, o STF examinou a exigência do ISS sobre os contratos de franquia. Caracterizados como contratos complexos, a franquia traduz um único negócio jurídico que engloba a cessão de uso de marca (prestação dedar)ediversasformasdefazercomoassistênciatécnica,orientaçãoaofranqueadoetreinamentodefuncionários.
No RE 603.136, o STF consagra a orientação pela incidência do ISS quando se está diante de operações mistas/ híbridas, de caráter complexo, em que não é possível segregar as diversas obrigações de dar e fazer envolvidas, desde que a atividade esteja prevista na Lei Complementar 116/03 (LGL\2003\482).
Entretodasasdecisõesjáproduzidasarespeitodatributaçãodesoftwares,nenhumaétãocitadaquantoadoRE
176.62612.Proferidaem1998,adecisãoexaminouaincidênciadoICMSnaslicençasdeusocomsoftwareveiculados em disquetes vendidos nas lojas físicas.Além desse, destaca-se o julgamento em 2010 daADI/MC 1.945, que versou sobre a cobrança do ICMS pela Lei do Mato Grosso 7.098/98 nas operações com software via download.
No RE foi adotada a famosa distinção entre software de prateleira e software por encomenda, que embasou toda a orientação jurisprudencial que se seguiu no âmbito do Judiciário, inclusive decisões do próprio Fisco, no sentido de que operações com softwares padronizados, produzidos em série para ser comercializados no varejo a uma pluralidade de consumidores, estariam sujeitas ao ICMS, enquanto que programas de computador personalizados, desenvolvidos para atender às necessidades específicas de determinado usuário, atrairiam o ISS.
A histórica compreensão do RE 176.626 e como esse precedente foi aplicado durante mais de 20 anos são um desacerto e ignoram importantes conclusões ali firmadas. Primeiro, porque a referida classificação de programas de computador não serviu para demarcar o campo de incidência daqueles impostos. Segundo, porque o Ministro Relator Sepúlveda Pertence, firme na ideia de que o conceito de mercadoria não abrangeria bens incorpóreos, diferenciou duas relações jurídicas quando softwares de prateleira são licenciados: um contrato de aquisição do corpo mecânico que veicula o software e um contrato de licença de uso que tem como objeto o direito autoral de usar o programa. Na venda do disquete, incidiria o ICMS, na licença de uso, não.
Em momento posterior, foi levada à apreciação do STF, por meio da ADI 1.945, a constitucionalidade da norma introduzida pela Lei do Estado do Mato Grosso 7.098/1998, que exigia o ICMS sobre software padronizado utilizando como base de cálculo o valor da operação (e não o valor do suporte físico). Desse modo, admitir-se-ia também a incidência sobre as operações feitas mediante download.
Na apreciação da medida cautelar da referidaADI, o STF sinalizou pela evolução do conceito de mercadoria e admitiu a incidência do ICMS sobre “softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados”. Assinalou a Corte Suprema que o “Tribunal não pode se furtar a abarcar as situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas”. Sob a perspectiva de que a mudança na realidade pode afetar a interpretação do texto constitucional e que toda transação de bens e serviços deve ser tributada em nome da justiça tributária e da capacidade contributiva, concluiu o voto vencedor do Ministro Relator Nelson Jobim que, seja por meio de disquete ou download, adquire-se “o que se contém dentro do disquete ou aquilo que é transmitido via sistema de Internet”.
Como se observa, rompe-se o paradigma utilizado no RE 176.626 de que o software, como entidade imaterial, não poderia se subsumir ao conceito de mercadoria.
Contudo, importa observar que, naquela oportunidade, parte dos Ministros, que optaram por manter a lei mato- grossense em vigor, indeferiram a cautelar por entenderem que não havia mais urgência e perigo da demora, pois a norma já produzia efeitos há 11 anos. Ministros como MarcoAurelio, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski ponderaram a necessidade de se debater o mérito e de uma lei complementar para dirimir conflito entre Estados e Municípios, até porque tanto o RE 176.626 como aADI/MC 1.945 foram apreciados antes do advento da LC 116/03 (LGL\2003\482). Além de terem partido de um contexto normativo bastante distinto do atual, esses julgados estavam inseridos em um cenário econômico igualmente diverso, quando sequer existia a computação em nuvem.
Os Estados e os Municípios sempre disputaram, judicial e legislativamente, a caracterização jurídica do software, produzindo conflitos que impactam diretamente a distribuição de competências tributárias e, indiretamente, os mecanismos de apuração de tributos pelos contribuintes.
Com o crescimento das transações com software por meio da Internet, o conflito entre ISS e ICMS foi ganhando cada vez mais força.
De um lado, temos os Municípios respaldados na LC 116/2003 (LGL\2003\482), que prevê, no item 1.05 da Lista Anexa,olicenciamentodedireitodeusodesoftwarecomoserviçotributávelpeloISSe,deoutro,nos
pronunciamentos mais recentes do STF13, pela ampliação do conceito constitucional de prestação de serviços, que têm validado a cobrança do imposto municipal sobre atividades que escapam do conceito civilista de serviço.
Do outro, os Estados defendem que a tributação do consumo na forma bipartida, baseada na dicotomia dar e fazer e no conceito clássico de “mercadoria”, atrelado a um bem corpóreo, figuram como critérios problemáticos para classificar os negócios da economia digital e, diante da necessidade de ajustar a materialidade tributária a novas formas de exploração econômica, “mercadoria” haveria de ser compreendida como todo bem inserido no contexto de produção, circulação e consumo.
Especialmente depois da decisão do STF na ADI/MC 1.945, os Estados viram-se legitimados a retomar o entendimento pela incidência do ICMS e, consequentemente, passaram a regulá-lo por meio de Convênios editados junto ao CONFAZ. Desses, importa destacar os Convênios ICMS 181/2015 e 106/2017. Combinados, eles previram a possibilidade de incidência do ICMS indistintamente sobre programas de computador padronizados distribuídos via downloadoumeiofísico,calcularamotributodevidosobreo“valordaoperação”,submetendo-oàalíquotamáximade 5% (cinco por cento) e, ainda, determinaram que a incidência deverá ser feita no Estado em que esteja o adquirente do programa, sendo contribuinte a pessoa jurídica que disponibilize o software. No âmbito do Estado de São Paulo, para dar operatividade a esse regime, foram editados os Decretos 61.791/2016 e 63.099/2017.
Tais medidas acirraram a disputa protagonizada por esses entes políticos, contribuindo para a insegurança jurídicadas empresas atuantes no setor e foram objeto de ações declaratórias de inconstitucionalidade (ADI’s 5.576 e 5.958)e do Mandado de Segurança Coletivo 1010278-54.2018.8.26.0053. Houve, também, o ajuizamento da ADI 5.659 contra a legislação do Estado de Minas Gerais.
Ainda sobre a judicialização dessa disputa, foi submetida à sistemática da repercussão geral a matéria acerca da incidência de ISS sobre contratos de licenciamento de programas de computador desenvolvidos para clientes deforma personaliza (Tema 590, RE 688.223). Apesar de não tratar especificamente da tributação sobre softwarespadronizados, essa repercussão geral acabou por causar o sobrestamento de diversos processos, o que impediu o Judiciário de se manifestar a respeito da tributação pelos Municípios.
O constituinte de 1988 outorgou à União, no art. 154, inciso I, uma faixa residual para tributar fatos de substrato econômico que não correspondam àqueles previstos nos arts. 153, 155 e 156.Acompetência residual confere à Carta Republicana a flexibilidade econômica necessária para se adaptar aos progressos imanentes da rica e heterogênea tessitura das relações interpessoais firmadas no âmbito do direito privado.
Doutrinadores de peso, como Roque Antonio Carrazza14 e Aires F. Barreto15, baseados nos conceitos de direito privado incorporados pelo constituinte de 1988, adotam o entendimento no sentido de que a exploração econômica do software por meio das licenças de uso traduz signo presuntivo de riqueza alcançado por essa competência estatuída no art. 154, I.
Em relação ao ICMS, defende-se que, ainda que superado o requisito da corporeidade para caracterizar um bemcomo mercadoria, é certo que a competência tributária dada aos Estados para fazer incidir o ICMS carece ainda da comprovação de que houve “circulação” de mercadoria, isto é, transferência de titularidade. Daí já se entrevê as dificuldades de se fazer enquadrar as licenças de uso de software como circulação de mercadoria, uma vez que as licenças não transferem a propriedade sobre o bem imaterial, mas tão somente autorizam o exercício do direito de usufruir do programa de computador.
EmrelaçãoaoISS,argumenta-sequeaslicençasdeusodesoftwarenãoseamoldariamàideiadeumaobrigaçãode fazer,aproximando-semaisdanoçãodeobrigaçãodedar e,assim,nãoestariamcompreendidasnacompetênciados Municípios para instituir o ISS.
Embora grande parte do debate da tributação do software acabe englobando a guerra fiscal entre Estados e Municípios, a distinção entre serviço e mercadoria não é apenas parâmetro para definir a tributação do consumo pelo ISS e pelo ICMS, mas também tem seus importantes reflexos na tributação federal.
Na esfera federal, além dessa dicotomia (serviço x mercadoria), também vai assumir importância outra dualidade serviços x royalties. Isso porque a legislação do Imposto sobre a Renda (art. 22 da Lei 4.506/64 (LGL\1964\16)) estabelece royalties como valores recebidos pela exploração de direito autoral. Ou seja, há um terceiro gênero que não se confunde com rendimentos derivados de mercadoria e serviços.
Uma breve incursão nas manifestações da Receita Federal do Brasil (RFB) é muito oportuna para certificar, também no âmbito da União, as incongruências exegéticas em matéria de tributação de software. Tal desarmonia se constata, por exemplo, nas orientações do Fisco sobre a contribuição ao PIS, a COFINS e o IR-Fonte nas importações de programas de computador.
NocontextodacontribuiçãoaoPISedaCOFINS,aLei10.865/2004(LGL\2004\2668),emseuart.1º,16instituiuasua
incidência sobre a importação de bens e serviços provenientes do exterior. De acordo com os arts. 3º17 e 7º,18 a base de cálculo das contribuições corresponderá: na hipótese de importação de bens, ao valor aduaneiro do bem estrangeiro no território nacional; e, na hipótese de prestação de serviços, ao valor pago, creditado, entregue, empregado ou remetido para o exterior, antes da retenção do IR, acrescido do ISS e do valor das próprias contribuições.
A partir de Soluções de Consulta editadas pela RFB, que examinaram se o negócio jurídico de licenciamento de “softwaredeprateleira”identifica-secomalgumadessasmaterialidades,encontramostrêsdireçõesinterpretativasna
qualificaçãojurídicadessescontratos:(i)negociaçãocomsoftwareequipara-seàcompraevendademercadoria;19(ii)
aimportaçãodesoftwaremediantelicenciamentodeusoedecomercializaçãocompreendeprestaçãodeserviço;20e
(iii)licençasde software traduzemexploraçãoeconômicadedireitosimateriais.21
De acordo com a primeira interpretação – (i) –, respaldada no entendimento do STF firmado no RE 176.626-3, nas operações, em que o importador adquire o direito de uso ou comercialização e distribuição de softwaresdesenvolvidos no exterior, haveria a preponderância do caráter mercantil da relação jurídica, configurando esse tipode contrato fato gerador para a incidência do PIS/COFINS-Importação na forma prevista no art. 3º, I, da Lei 10.865/ 2004 (LGL\2004\2668).
Nessescasos,aprópriaRFBfazaressalvadequesomenteserádevidoorecolhimentoquandohásuportefísicopara veicular o programa de computador, logo, sem onerar as licenças adquiridas por meio de transferência eletrônica de dados (download). Isso porque, na importação de bens, a base de cálculo das contribuições corresponde ao valor aduaneiro,determinadounicamenteapartirdocustodosuporteinformático,desdequeovalordosdadosou
instruçõesestejadestacadonodocumentofiscal.22
Na segunda interpretação – (ii) –, ao concluir pela tributação sobre os valores remetidos para o exterior a título de contraprestação por serviços prestados, a RFB, além de justificar o enquadramento das licenças de software como serviço no item 1.05 da ListaAnexa à Lei Complementar 116/2003 (LGL\2003\482), registrou que a legislação do PIS/ COFINS-Importação teria adotado uma concepção econômica de “serviço”, que escapa do conceito meramente civil, alcançando, por isso, a exploração econômica de direitos autorais. Ilustra sua ilação, a partir de comandos insertos na Lei10.865/2004(LGL\2004\2668),quepreveemaincidênciadessascontribuiçõessobreprêmiosdeseguro(art.7º,
Quando o software padronizado, objeto de licenças, é veiculado em suporte físico, há decisões23 do órgão fazendário combinando a primeira (i) com a segunda (ii) direção interpretativa para esclarecer que, nessas hipóteses, tem-se o fato gerador do PIS/COFINS-Importação na (a) entrada do bem submetido ao despacho aduaneiro, incidindo as exações sobre o valor do suporte físico destacado na nota fiscal (art. 3º, I); e na (b) remessa de valores ao exterior, a título de remuneração pela exploração econômica e comercial do direito autoral (art. 3º, II).
Por sua vez, conforme a terceira interpretação – (iii) –, a importação de software por meio de licenças de uso e de comercialização não se amolda ao conceito de prestação de serviços, tampouco figura como operação de compra e venda de mercadoria.
Sob essa perspectiva da RFB, como por meio das licenças disciplinadas nos arts. 9º e 10º da Lei 9.610/98 (LGL\1998\78), autoriza-se terceiros a usar ou comercializar o programa de computador, o seu objeto caracteriza-se como uma obrigação de dar e a contraprestação devida é o pagamento de royalties pelo uso, fruição e exploração de direitos imateriais, na forma enunciada pelo art. 22 da Lei 4.506/64 (LGL\1964\16), portanto, não se subsumindo à nenhuma das hipóteses de incidência plasmadas no art. 3º da Lei 10.865/2004 (LGL\2004\2668).
Esta última orientação prepondera no âmbito da Receita Federal, cuja Coordenação Geral de Tributação (COSIT), provocada a se manifestar diante de Soluções de Consulta discordantes, emitiu as Soluções de Divergência 11, de 28 de abril de 2011, e 2, de 07 de março de 2019, para selar o entendimento de que “as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a residente e domiciliado no exterior a título de royalties relativos a softwares” não sofrem a incidência de PIS/COFINS-Importação.
EsclareceaindaaRFBque,paraassituaçõesemquecontratadosjuntoàempresasediadanoexteriorserviços
conexos24 ao licenciamento, tais como customização no software, suporte técnico e assistência técnica, o contrato firmado há de identificar a fração do negócio como licença e aquela relativa a serviços, como também as faturas emitidas hão de discriminar as remunerações devidas a título de royalties e as quantias pagas como contraprestação pelos serviços. Quando ausente essa segregação, no documento que lastreia o negócio ou o contrato não for suficientemente claro, as operações praticadas serão qualificadas todas elas como serviços e as contribuições recairão sobre a totalidade do valor ajustado e remetido a empresas no exterior.
No que diz respeito ao IR-Fonte incidente sobre rendimentos, ganhos e demais proventos pagos ou remetidos ao exterior, sua apuração e definição das alíquotas estão delimitadas pelos arts. 744 a 748 do Decreto 9.580/2018 (LGL\2018\10418)(RIR/2018).Determinamtaisdispositivosaaplicaçãode:(i)alíquotade25%paraserviçoemgeral;
(ii) alíquota de 15% para serviço técnico, de assistência administrativa ou semelhante; (iii) alíquota de 15% para pagamento de royalties; ou (iv) alíquota de 15% para valores que remuneram fatos diversos dos anteriores.
São inúmeras as Soluções de Consulta expedidas pela RFB para demarcar em qual das faixas de incidência retrodescritas devem ser compreendidos os pagamentos ao exterior decorrentes de licenças de software. Porém, é possível sintetizar as orientações pelo resolvido nas Soluções de Divergência 27/2008 e 18/2017, as quais examinaram o cabimento da retenção do IR-Fonte nas remessas a título de contraprestação por licenças de comercialização de softwares na modalidade “cópias múltiplas” (“software de prateleira”).
Aprimeira delas – de 2008 –, embora ressalve expressamente que “uma primeira análise levaria à conclusão de que, por prever a concessão de direitos de comercialização, o contrato abrangeria direitos autorais e, por decorrência, as remessasaoexteriorconsistiriam,principalmente,emroyaltiessujeitosàincidênciadeimpostoderendanafonte”,
acaba por concluir que os valores remetidos ao exterior não estariam submetidos ao IR-Fonte diante do entendimento firmado no RE 176.626-3.
Naquela oportunidade, esclareceu o Fisco que o STF teria consignado que “softwares produzidos em série e comercializados no varejo (‘software de prateleira’) são mercadorias”, e, com isso, teria negado “a condição de licenciado ou de concessionário ao comerciante que revende cópias múltiplas de software”, equiparando as licenças de software de prateleira às transações de compra e venda de mercadorias.
A partir dessa compreensão distorcida do decidido pela Corte Suprema, a RFB entendeu que, quando o negócio contempla um software padrão, a ser distribuído para uma pluralidade de clientes, a contraprestação não se enquadra como rendimentos de direitos autorais (royalties), mas como preço pela aquisição de um produto para posterior comercialização a consumidores finais, o que afastaria a incidência do IR-Fonte.
Posteriormente, na segunda Solução de Divergência, de 2017, o órgão alterou seu entendimento para incidir o IR- Fonte nos valores pagos pela licença de direitos de comercialização. Aqui, distinguiu duas situações para aplicar o julgado do STF: (i) se a operação de importação traduz licença de uso ou (ii) se a operação de importação traduz licença de comercialização.
Na explanação do Fisco, a licença de uso ocorre somente “no percurso entre o distribuidor ou revendedor e o cliente, ou seja, no momento em que o distribuidor ou revendedor fornece as licenças de uso do software a seus clientes”, situação que não se confunde com a “relação contratual que tem o distribuidor ou revendedor brasileiro com a empresa estrangeira que detém os direitos intelectuais sobre o software”.
Feita a distinção, consignou a COSIT, nessa segunda Solução de Divergência, que, como a matéria apreciada no RE 716.626-3 cingia-se a operações de “licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador”, o julgamento do STF de que software padronizado assume a natureza de mercadoria não se estenderia às licenças de comercialização:
“[…] 25.Assim, é indevida a extensão da interpretação dada pelo STF referente à tributação de ICMS sobre softwaresde prateleira para os casos abrangidos por esta solução de divergência, em que se transaciona apenas a licença de comercialização concedida por pessoa jurídica domiciliada no exterior a um distribuidor brasileiro, em caráterexclusivo ou não, para que este distribua aos seus clientes no mercado interno a licença de uso do software, nos moldesdalegislaçãobrasileira.Nessescasos,restaevidenciadoquesetratamdecontratoscomobjetosdistintos:um sobre o direito de comercializar ou distribuir o software e o outro sobre o direito de uso do software.”
Uma vez que o precedente do STF apenas alcançaria as importações para uso próprio, concluiu a RFB que, se o contrato prevê o direito de comercializar e distribuir o software, sob a modalidade de cópias múltiplas, para posterior concessão de licença de uso a consumidor final, as importâncias remetidas à empresa domiciliada em paísestrangeiroenquadram-senoconceitoderemuneraçãodedireitosautorais(royalties)eestãosujeitosàincidênciado
ImpostosobreaRenda(IRRFàalíquotade15%).25
Se já não bastassem as contradições traçadas supra, a RFB adotou entendimento diverso na qualificação jurídica de contratos com software para definir o tratamento tributário a ser dispensando às licenças firmadas na modalidade SaaS.
Na Solução de Consulta 191, de 23 de março de 2017, o órgão federal entendeu que as importâncias pagas e remetidas ao exterior “decorrentes de autorizações de uso e acesso a Software as a Service” envolvem contrato de “prestação de serviços técnicos, que dependem de conhecimentos especializados em informática e decorrem de estruturas automatizadas com claro conteúdo tecnológico”.
Adefinição da natureza jurídica das licenças eletrônicas de software não só repercute na exigência do IR-Fonte e PIS/ COFINS nas remessas de valores ao exterior, mas também tem seus reflexos na apuração do IRPJ e CSLL das empresas de software submetidas ao regime do lucro presumido. Para fins de determinação do lucro presumido e basedecálculodoIRPJedaCSLL,opercentualaplicávelàreceitabrutaéde8%paraoIRPJe12%paraaCSSLse a atividade da empresa corresponde a comércio, venda de mercadoria. Será 32% para ambos os tributos se a atividade prevalente do contribuinte for prestação de um serviço.
De acordo com diversas orientações da Receita Federal, as licenças de uso de software padronizado correspondem à “vendademercadoria”,aplicando-seospercentuaisdepresunçãodelucratividadede8%(IRPJ)e12%(CSLL)e,nas
hipótesesde software porencomenda,opercentualéde32%porenvolverumserviço26.
Em 2021, o STF concluiu o julgamento daADI/MC 1.945 junto com o julgamento daADI 5.659. Liderado pelo voto do Ministro Dias Toffoli, o STF afastou o ICMS nas operações de licenças de uso de software, cabendo aqui destacar o raciocínio e os principais fundamentos deste voto condutor para concluir em favor do ISS.
De início, registrou o Ministro que a classificação entre software de prateleira e por encomenda não seria suficiente para demarcar a competência tributária, pois alicerçada exclusivamente na dualidade “obrigações de dar e fazer”, a qual estava sendo superada pela Corte em diversos precedentes.
Toffoli vale-se do direito comparado e cita diretrizes e princípios adotados pela União Europeia e OCDE para o comércio eletrônico, tais como: (i) não criar impostos novos e adaptar os existentes; (ii) princípio da flexibilidade, segundo o qual sistemas tributários devem ser dinâmicos, não podendo ficar alheios às novas realidadestecnológicas; (iii) garantir neutralidade de modo que o tratamento tributário seja o mesmo para o comércio eletrônico e o convencional – deve-se evitar a bitributação pelo ISS e pelo ICMS, mas também não podem as operações com software ficar de fora do alcance de qualquer tributação; e (iv) considerar transmissão eletrônica como serviços, a exemplo do IVA europeu e Sales for Tax Norte americano.
Inspirado nessas diretivas da experiência internacional, o STF aceita a interpretação evolutiva do texto constitucional, deixa de lado a alternativa posta no art. 154, I, da CF (LGL\1988\3), que autorizaria a União exercer sua competência residual para tributar essas novas tecnologias, e vai se utilizar de um imposto já existente, que será o ISS.
Ao voltar-se para o ordenamento jurídico brasileiro, Toffoli adota o critério objetivo da lei complementar ancorado no que prescrevem os arts. 146, I, 156, III, e 155, § 2º, IX, “b”, da CF (LGL\1988\3). Segundo essa sistemática objetiva, cada vez mais empregada pelo STF para solucionar conflitos entre Estados e Municípios, o ISS irá incidir sobre atividades que representem tanto obrigações de fazer quanto operações mistas, que dizem respeito a contratos complexos, em que presentes relações de dar e de fazer indissociáveis sob a perspectiva jurídica e financeira. Na hipótese de contratos complexos, conferindo crescente prestígio ao disposto no art. 155 citado, concluiu o STF que incide o ISS sempre que o serviço está definido na lei complementar como tributável por tal imposto.
Ao examinar a natureza jurídica do licenciamento de uso do software, Toffoli considera legítima a escolha da LC 116/ 03 (LGL\2003\482) quando incluiu no item 1.05 essa atividade na lista anexa. Para o Ministro, a licença de uso é uma operação mista/complexa, com prevalência de prestação de serviço: o “dar” estaria presente no momento da transmissãodoprogramadecomputadorpermitindooseuacessopelousuário,maso“fazer”,engenhohumano,seria a característica fundamental do software, pois faz-se imprescindível a existência de um esforço intelectualdirecionado para o desenvolvimento de qualquer programa de computador, mesmo que padronizado. Além desse esforço intelectual, o fazer humano revela-se nos demais serviços e funcionalidades ofertadas ao usuário, como “o help desk, a disponibilização de manuais, atualizações tecnológicas e outras funcionalidades previstas no contrato de licenciamento ou de cessão de uso”.
Atentoaomodelodenegóciodelicenciamentodesoftwaressuportadosnacomputaçãoemnuvem,Toffolipontuaque se mostra ainda mais evidente esse esforço intelectual nas operações de SaaS (Software as a Service), por prover soluções tecnológicas de forma contínua e exigir gestão e manutenção constante de aplicativos e máquinas por profissionais com conhecimento especializado sobre computação.
Um último aspecto de extrema importância há de ser destacado deste julgamento: embora a maioria dos Ministros admita a incidência do ICMS sobre bens incorpóreos, ficou consignado que o fato gerador deste imposto estadual pressupõe transferência de titularidade do bem, o que não ocorre nos licenciamentos de uso de software. Tal entendimento repercute não só na compreensão do tratamento tributário de contratos com software, mas também constitui relevante paradigma para a tributação de outros negócios jurídicos da economia digital.
O STF então, alicerçado em todos os fundamentos retrodelineados, declara inconstitucional a Lei do Mato Grosso 7.098/98 na parte em que exige o ICMS sobre transações eletrônicas com software (ADI/MC 1.945) e atribui à legislação do Estado de Minas Gerais, bem como ao art. 2º da LC 87/96 (LGL\1996\37), interpretação conforme à Constituição Federal, excluindo das hipóteses de incidência do ICMS o licenciamento de uso de programas de computador (ADI 5.659).
Apartir da definição pelo Plenário nessasAções Diretas de Inconstitucionalidade, a Corte Suprema julga aADI 5.576, ajuizada contra a legislação do Estado de São Paulo, também impedindo o Fisco paulista de cobrar o ICMS sobre as licenças de uso de software.
Na ADI 5.958, por meio da qual se combatia o Convênio CONFAZ 106/2017 que tentou validar a cobrança do ICMS sobre novas tecnologias de forma mais ampla, referindo-se a qualquer operação com bens digitais, a Ministra Cármen Lúcia declarou a ação prejudicada com o julgamento daADI 5.659. Segundo a Ministra, houve a perda superveniente do seu objeto, uma vez que o pedido na ADI 5.958 consistia em impugnar o art. 2º da LC 87/96 (LGL\1996\37) para “afastarqualquerpossívelinterpretaçãoquepermitaaincidênciadoICMSsobreoperaçõesdetransferênciaeletrônica de softwares e congêneres”.
Ainda de acordo com Cármen Lúcia, o Convênio 106/17 teria perdido sua eficácia desde o julgamento daADI 5.659, por se tratar de ato regulamentador do art. 2º da LC 87/96 (LGL\1996\37), editado com base em interpretação tida como inconstitucional pelo STF. Ao assim decidir, a Ministra corrobora com a possibilidade de prevalecer a tese de que os Estados não seriam competentes para tributar transações com bens digitais.
O STF, também em 2021, concluiu o julgamento do Tema 590 no RE 688.223. No mesmo rumo do decidido nasADI/ MC 1.945 e 5.659, os Ministros destacaram que, independentemente do tipo de software, se produzido sob encomendadoclienteouparaoconsumomassivo,naslicençasdeusodesoftwareháobrigaçãodefazer,devendo
incidiroimpostomunicipal28.
Na esfera jurisdicional do Estado de São Paulo, oTribunal de Justiça igualmente deu ganho ao contribuinte nos autos doMandadodeSegurançaColetivo1010278-54.2018.8.26.0053.EmboraoTribunalpaulistapondereoconflitoentre
Estados e Municípios, a ratio decidendi ali foi a violação ao princípio da legalidade tributária, já que o Decreto 63.099/ 2017 havia incluído no RICMS/SPnovas hipóteses de incidência do tributo, relativas a operações de licenciamento de software por meio de transferência eletrônica de dados.
Apesar da intensa disputa que opunha entendimentos doutrinários, Municípios, Estados e até mesmo diferentes divisões orgânicas da Administração Federal, recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, tanto em Ações Diretas de Inconstitucionalidade como em Recursos Extraordinários com repercussão geral, assentaram que o licenciamento de software deve ser considerado, para fins tributários, como obrigação de fazer, sendo justificável seu tratamento como espécie de serviço.
Tal modificação já começa a reverberar no posicionamento de outros tribunais, mas ainda precisa ser materializado nas diversas esferas e práticas administrativas, uma vez que tal caracterização interfere, também, no delineamento das incidências de tributos federais, notadamente PIS, COFINS, IRPJ, CSLL e CIDE-Royalties.
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TJSP,MSC1010278-54.2018.8.26.0053,10ªCâmaradeDireitoPúblico,j.21.09.2020,Rel.Des.MarceloSemer. STF, RE 232.467-5, Plenário, j. 29.09.1999, Rel. Min. Ilmar Galvão.
STF, RE 166.772-RS, Plenário, j. 12.05.1994, Rel. Min. MarcoAurélio. STF,RE116.121-SP,Plenário,j.11.10.2000,Rel.Min.OctavioGallotti. STF, RE 592.905-SC, Plenário, j. 02.12.2009, Rel. Min. Eros Grau.
STF,RE651.703-PR,Plenário,j.29.09.2016,Rel.Min.LuizFux.
STF, RE 603.136-RJ, Plenário, j. 29.05.2020, Rel. Min. Gilmar Mendes. STF,ADI/MC1.945-MT,Plenário,j.26.05.2010,Rel.Min.OctavioGallotti.
STF,RE176.626-3-SP,PrimeiraTurma,j.10.11.1998,Rel.Min.SepúlvedaPertence. STF,ADI 5.576-SP, Plenário, j. 03.08.2021, Rel. Min. Roberto Barroso.
STF,ADI5.958-DF,Plenário,j.21.07.2018,Rel.Min.DiasToffoli. STF,ADI5.659-MG,Plenário,j.24.02.2021,Rel.Min.DiasToffoli. STF, RE 688.223-PR, Plenário, j. 22.04.2022, Rel. Dias Toffoli.
Parágrafo único. Na hipótese de eventual inexistência do contrato referido no caput deste artigo, o documento fiscalrelativo à aquisição ou licenciamento de cópia servirá para comprovação da regularidade do seu uso.”
I-aentradadebensestrangeirosnoterritórionacional;ou
II-opagamento,ocrédito,aentrega,oempregoouaremessadevaloresaresidentesoudomiciliadosnoexterior como contraprestação por serviço prestado.
II – o valor pago, creditado, entregue, empregado ou remetido para o exterior, antes da retenção do imposto de renda, acrescido do Imposto sobre Serviços de qualquer Natureza – ISS e do valor das próprias contribuições, na hipótese do inciso II do caput do art. 3º desta Lei.
SRRF09/Disit,de2013;eSC303–Cosit,de14dejunhode2017.
SRRF04/Disit50,de2006;SCSRRF08/Disit46,de2007;SC133SRRF10/Disit,de09denovembrode2010;eSC
74–SRRF07/Disit,de16dejulhode2013.
2017;SC374COSIT,de2017;SC381COSIT,de2017;SC448COSIT,de2017eSC9092–SRRF09/Disit,de2018;
eSD2–COSIT,de7demarçode2019.
15.05.2017.