Robson Maia Lins
Pablo Gurgel Fernandes
Sempre que atendemos ao honroso convite para homenagear alguém tão admirável, buscamos moldar a pesquisa científica de modo que o produto expresse ao menos uma de suas múltiplas virtudes. Voltando nossa atenção à vida intelectual do ilustre jurista WILIAM WANDERLEY JORGE, pareceu-nos impossível deixar de notar sua salutar convicção a respeito da necessidade de se estabelecer um verdadeiro diálogo entre os ramos – apenas didaticamente autônomos[4] – do Direito Penal e do Direito Tributário, no afã de compreender satisfatoriamente o sentido deôntico das mensagens vertidas na tecitura do Direito Penal Tributário. É dizer: “O Direito Penal Tributário, independentemente de divergências intensas quanto à sua vinculação, autonomia, origem e denominação, pode e deve ser submetido a estudo sistemático em separado”[5].
Assim nosso Homenageado laborou ativamente, nas esferas acadêmica e profissional, não somente por ter a lúcida consciência de que as relações de coordenação e subordinação normativas são inerentes ao subsistema comunicacional do direito. Em verdade, fê-lo também – e principalmente – por observar com argúcia que, não raras vezes, o Direito Penal opera em sobreposição ao Direito Tributário, no sentido de valorar negativamente o descumprimento de certas classes de deveres jurídicos já previamente definidos e sancionados no âmbito da legislação tributária. Noutros termos: “A simbiose entre ambos é tão profunda que se não houver fato gerador e obrigação tributária, regra geral, não se pode falar em crime fiscal”[6].
A partir desta perspectiva dialógica, e com mestria, WILIAM WANDERLEY JORGE pôde propor caminhos interpretativos de cariz sistemático, na busca por soluções coerentes e isonômicas para as tensões sempre renovadas que emergem e progridem à medida em que o encadeamento das normas jurídicas se desloca em direção aos planos da concretude e da individualização. Em suas palavras:
Ao Direito Penal Tributário são aplicáveis, assim, os princípios que caracterizam tanto o Direito Tributário como o Direito Penal. Não se pode pretender aplicar de maneira exclusiva os princípios de Direito Penal, visto que é necessário contar com o conhecimento pleno do Direito Tributário,o que mostra uma especial conexão e interatividade entre estes dois ramos jurídicos.[7]
Muito embora todo sistema seja necessariamente um conjunto, uma simples reunião de elementos não é suficiente para configurá-lo. Exige-se sempre um “algo mais”, a identificação da presença de vínculos mínimos de concatenação e racionalidade, em ordem a permitir se afirmar dada unidade como parte constitutiva de um todo que lhe confere sentido sistemático. Não por outra razão, a edição da SV nº 24[8] foi precedida de extensos debates, refletidos e intertextualizados, entre Ministros do Supremo Tribunal Federal, que dialogaram com inúmeras categorias definidas normativamente pelo Direito Tributário, como são “fato gerador”, “obrigação tributária”, “lançamento tributário”, “decadência tributária” e “exigibilidade do crédito tributário”, para não mencionarmos ainda as considerações que se teceram sobre política fiscal, contencioso administrativo, sanção política e meios de satisfação do crédito tributário.
Portanto, caso tivéssemos que eleger apenas uma das valiosas lições que, na pessoa do Dr. WILIAM WANDERLEY JORGE, encontrou exemplo vívido e, ato contínuo, fôssemos instados à proclamá-la em tônica assertiva, certamente procederíamos para afirmar o seguinte: em matéria de Direito Penal Tributário, não há espaço para monopólio do penalista que deixa de se aprofundar no estudo do Direito Tributário, tampouco monólogo de tributarista que pouco compreende de Direito Penal e Processual Penal, ou mesmo protagonismo do constitucionalista que despreza as margens de liberdade constitucionalmente outorgadas aos legisladores infraconstitucionais para imprimirem forma e conteúdo ao direito posto.
Nos últimos anos, passamos a crer que não é profícuo seguir depositando esperançosas expectativas em julgamentos de Tribunais Superiores, por mais esmerados que possam e venham ser, porquanto decisões colegiadas pontuais jamais terão real aptidão para funcionar como sucedâneo de uma genuína e sistematizada reforma legislativa em matéria penal tributária. Se bem repararmos, os desfechos jurisdicionais dados à certos leading cases de repercussão nacional, ao tempo que pretenderam dirimir velhas controvérsias, inauguraram novos capítulos de dissidências interpretativas no seio da comunidade jurídica[9].
Por ocasião dos debates de votação da PSV nº 29/DF, registre-se, alguns então Ministros do Supremo Tribunal Federal pronunciaram-se enfaticamente contrários à sumulação em matéria penal[10]. E suas preocupações, em boa medida passíveis de transposição também para o fenômeno da fixação de teses, não podem ser desprezadas por aqueles que, como nós, observaram a substituição de velhos problemas por novas controvérsias.
Em caráter meramente ilustrativo, o desfecho dado à ADI nº 1.571/DF não foi suficiente para evitar o advento da ADI nº 4.980/DF, por intermédio da qual se pretendeu reavivar as discussões relativas aos critérios de classificação dos crimes contra a ordem tributária (em formais ou materiais), na tentativa de redesenhar, pela via judicial, o disciplinamento legislativo atualmente dado ao dever administrativo de envio da Representação Fiscal para Fins Penais ao Ministério Público.
Ainda título exemplificativo, o julgamento do RO em HCnº 163.334/SC – ao cabo do qual se estabeleceu a tese de que “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa e recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990” -não fixou critérios de modo exaustivo e isento de vaguidades para identificar um não-recolhimento tributário contumaz apto a gerar “graves danos ao erário e à livre concorrência”[11], muito menos apresentou fundamentação que possibilitasse delimitar precisamente a extensão do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990 para outras espécies tributárias[12].
Por outro lado, a análise da jurisprudência contemporânea do Supremo Tribunal Federal igualmentenos permitiu constatar um paradoxo, qual seja: considerar o descaminho como delito formal, cuja consumação e posterior instauração da persecução penal “não estão a depender da constituição administrativa do débito fiscal”[13], e reconhecer que sua prática vulneraria “os interesses econômicos do Estado, o produto nacional e a economia do país”[14], mas, ainda assim, admitir a aplicação do princípio da nonada penal-tributária exclusivamente com base no sopesamento entre “o valor do débito fiscal e o patamar estabelecido no art. 20 da Lei .nº 10.522/2002 e Portarias 70 e 130/2012 do Ministério da Fazenda, que determinam o arquivamento de execuções fiscais de quantia igual ou inferior ao estipulado na lei”[15].
Se a via jurisdicional não se mostrou a mais adequada para reformular o Sistema Penal Tributário, com muito maior razão, ao lume do atual panorama constitucional, o Poder Executivo não poderá capitanear tal atividade. A esta conclusão chegamos por partilhar da mesma leitura de PAULO BONAVIDES e PAESDE ANDRADE a respeito da proeminência do Poder Legislativo, lograda a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[16]. Logo, reafirmamos nosso desejo de vivenciar maiores debates legislativos, aprofundados e acurados, sobre os rumos da política criminal em matéria tributária. Seu caráter acentuadamente interdisciplinar reclama reflexões plurais em dimensão que não se coaduna com os limites de um processo judicial, ainda que de cariz objetivo seja. Sua reforma é de missão institucional que compete genuinamente ao Poder Legislativo protagonizar.
No desiderato de contribuir com os debates democráticos a respeito de tão específica matéria, que devem ser protagonizados na arena legislativa, arrolamos topicamente – mas, sem qualquer pretensão exauriente –questões que nos parecem dignas de exame expresso e enfretamento desinibido pelo Congresso Nacional.
Em primeiro lugar, é salutar que se concebam critérios que possibilitem definir e delimitar com clareza os bens jurídicos que realmente pretenderam ser – e, de fato, foram – tutelados por intermédio do ramo da ultimaratio. Isto porque, na realidade jurídica brasileira, encontram-se pelo menos três planos que precisam ser muito claramente distinguidos: (a) dos bens jurídicos que, por prescrição constitucional expressa, reclamam obrigatoriamente a tutela penal, (v.g. arts. 5º, incisos XXXVIII, alínea “d”,XLII, XLIII e XLIV, e 7º, inciso X, da CRFB/88); (b) dos bens jurídicos que o constituinte reputou relevantes e, por isso, poderão vir a ser eventualmente tutelados pelo Direito Penal (v.g. arts. 5º, incisos XLI e LXI, 102, inciso II, alínea “b”, 103-B, §4º, inciso IV, 109, incisos IV, VI e X, 124, caput, 227, §4º, 236, §1º, da CRFB/88); e (c) dos bens jurídicos de estatura constitucional que efetivamente foram objeto de tutela penal, mediante labor legislativo incriminador (art. 5º, inciso XXXIX, da CRFB/88).
Considerando que a liberdade individual é um direito fundamental (art. 5º, caput, incisos XV, LIV, LXVI, LXVIII, da CRFB/88), somente poderá ser restringida caso haja fundamento constitucional de igual estatura ou se edite lei formal com fundamento material na Lex Legum, havendo, para INGO WOLFGANG SARLET[17], substancial consenso a esse respeito. Todavia, conquanto a Emenda Constitucional nº 42/2003 tenha atribuído ao legislador complementar nacional o múnus de “estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas com igual objetivo” (art. 146-A da CRFB/88), até o presente momento não se encontram positivados critérios legais que permitam afirmar, circunscrever e efetivar, de modo preciso, seguro e isonômico, a tutela da livre concorrência pela via do Direito Penal Tributário.
Ademais, caso a vinculação legal da punibilidade à satisfação do crédito tributário, tal como reiteradamente estatuída pelo legislador nacional há aproximadamente 60 (sessenta) anos[18], significar simplesmente o delineamento de uma política criminal conscientemente direcionada ao reforço da tutela do erário, mais especificamente no que atine à arrecadação daquela principal espécie de receita pública derivada, tornar-se-á mandatório reconhecer repercussões penais para demais outras causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (art. 151 do CTN) e hipóteses de extinção da obrigação tributária principal (art. 156 do CTN)[19].
Em segundo lugar, como consectário da adoção de uma filosofia clara de tutela penal da ordem tributária, a reformulação do tratamento incriminador dado às infrações formais mostrar-se-á sobremodo pertinente. Como o art. 1º, incisos I à IV, o art. 1º, inciso V, e o art. 1º, parágrafo único, todos da Lei nº 8.137/1990, partilham um mesmo preceito secundário, qual seja, “pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”, haveremos de convir que três hipóteses jurídicas dissimilares, com diferentes graus de lesividade e níveis reprovabilidade, atualmente atraem uma idêntica consequência sancionatória in abstracto. E diante desta primeira situação, há apenas duas conclusões possíveis, porém inconciliáveis: (i) crimes materiais contra a ordem tributária estão sendo modicamente reprimidos; ou (ii) crimes “formais” ou “de mera conduta” contra a ordem tributária estão sendo excessivamente punidos.
Por outro lado, levando-se em conta o atual protagonismo conferido ao lançamento por homologação, sistemática que “terceiriza” ao sujeito passivo a constituição originária da obrigação tributária principal mediante envio de declaração ao Fisco (Súmula nº 436 do STJ)[20], poder-se-iam alterar os tipos penais de sonegação fiscal (art. 337-A do CP e art. 1º da Lei nº 8.137/1990) para, simplesmente, criminalizar a supressão ou redução de tributo ou contribuição[21], mediante omissão, erro na qualificação jurídica ou incorreção factual da declaração constitutiva no regime do “autolançamento”. E neste hipotético cenário propositivo, a cumulação da prática sonegadora com alguma reprovável outra conduta conexa, a ela adicionada para dificultar a constatação da sonegação, poderia muito bem figurar como causa de aumento da pena ou qualificadora, ao encontro de uma individualização sancionatória mais gradual.
Em terceiro lugar, também é de bom alvitre que o legislador elucide quais e até que medida as prescrições do Direito Penal têm caráter superpositivo relativamente ao Direito Tributário, para, em seguida, definir níveis, especificar consequências e demarcar fronteiras temporais dos inter-relacionamentos entre a consumação penal, o lançamento tributário, o contencioso administrativo fiscal, os estágios de desenvolvimento da persecução criminal e a fluência do prazo prescricional penal.
No ponto, sem prejuízo de outras considerações, pensamos especialmente: (a) nas espécies delitivas enquadradas na classe de crimes comumente designados como “formais” ou “de mera conduta”, que em certas ocasiões pressupõem o descumprimento de deveres instrumentais definidos ou regulamentados por uma legislação tributária cambiante e plurívoca, cuja interpretação melhor se coaduna com os níveis de conhecimento, especialidade e experiência prática da Administração Tributária, a quem competirá, inclusive, a lavratura do documento normativo denominado “Auto de Infração”, para enunciar a ilicitude e impor multa isolada; e (b) nas possibilidades de mitigação da diretriz jurisprudencial proclamada pela Súmula Vinculante nº 24 (v.g. embaraços à fiscalização e prática conexa de outros delitos de natureza não-tributária)[22], que atualmente carecem de reflexão e disciplina legislativa, com vistas à fixação de parâmetros objetivos razoáveis, de modo a ampliar segurança jurídica, assegurar isonomia e prevenir ou reprimir o fenômeno do overcharging.
Em quarto lugar, o contexto de debates voltados à reformulação do Sistema Penal Tributário é propício à prescrição definitória do conteúdo semântico da expressão “valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação”, disposta no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990, que nos últimos dois anos suscitou a construção de significações diversas, não raro inconciliáveis e vagas, até a fixação jurisprudencial de uma conotação econômica ao vocábulo “cobrar”. Sucede, no entanto, que o PL nº 4.788/1990[23] albergou, em sua redação originária, uma disposição neste sentido, mas que não prevaleceu e, por conseguinte, deixou de ser introduzida no produto legislado, qual seja, a proposta inaugural de um art. 2º, inciso V, com o seguinte teor: “deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguintes ao término do prazo fixado, tributo ou contribuição recebida de terceiro mediante acréscimo ou inclusão no preço de produtos ou serviços e cobrado na fatura, nota fiscal ou documento assemelhado”. E tal circunstância nos leva a crer que a expressão “cobrado”, em sua acepção técnico-jurídica, melhor se coadunaria com o dever instrumental atribuído à figura do agente de arrecadação ou percepção, definido por HÉCTOR VILLEGAS como “aquele que, por sua profissão, ofício, atividade ou função, está numa situação tal que lhe permite receber do destinatário legal tributário um montante tributário que, posteriormente, deve depositar à disposição do fisco”[24];[25].
Em quinto lugar, na eventualidade de se pretender reafirmar a opção política de não tratar os crimes contra a ordem tributária praticados por particulares como próprios[26], pertinente seria incorrer no truísmo de enunciar que a situação objetiva de empreender, fazendo-se formalmente sócio ou gestor de uma pessoa jurídica contribuinte, não significa nada além do que o exercício regular de direitos constitucionais (art. 23, inciso III, CP), com fundamento na autonomia privada (arts. 1º, inciso III, e 5º, caput, inciso XXII, §§1º e 2º, da CRFB/88), esteio na liberdade de exercício de “trabalho, ofício ou profissão” (art. 5º, inciso XIII, da CRFB/88) e pauta na livre iniciativa (arts. 1º, inciso IV, 5º, inciso II, e 170, caput, da CRFB/88)[27]. Assim laborando, a um só tempo, o Poder Legislativo: (i) inibiria a invocação da teoria do domínio final do fato para contextos factuais que envolvem estruturas jurídicas licitamente edificadas, como são aquelas de companhia ou sociedade empresária; (ii) estimularia o desenvolvimento de investigações policiais e/ou ministeriais tendentes à desvendar concretamente as estruturas organizacionais e operacionais da entidade contribuinte; e (iii) acentuaria os ônus processuais acusatórios de relatar e comprovar o modus operandi da prática pessoal, consciente e intencional da conduta penalmente tipificada.
Em sexto lugar, quer pelos fundamentos que se coordenaram para a edição da SV nº 24, quer pelas vedações de superior hierarquia à prisão por dívida (art. 5º, inciso LXVII, §§1º e 2º, da CRFB/1988 e art. 7º, 7, do Pacto de São José da Costa Rica), conveniente seria positivar o esclarecimento de que sonegação fiscal não é sinônimo de “ser autuado” ou “ter débito fiscal em aberto”[28]. Afinal, como tivemos a oportunidade de refletir em outra ocasião[29], caso “a materialidade pudesse ser confundida com a mera existência de crédito tributário ‘definitivamente constituído’ e a autoria se resumisse à figura de um ‘gestor’, por aquilo que ele é, pelo cargo que desempenha, o processo penal nem mesmo precisaria de instrução”. Isto porque, “com a certeza preexistente de uma condenação, o Estado-Juiz somente teria a atribuição de realizar a dosimetria da pena e cuidar de sua execução coativa”.
E em sétimo lugar, pensamos desenganadamente que o tema da insignificância penal é de igual modo digna de atrair as atenções e cautelas do legislador penal.
Inicialmente, com fundamento no caráter subsidiário do Direito Penal, alguns parâmetros numéricos passaram a ser utilizados pelo Poder Judiciário para construir decisões reconhecedoras da atipicidade material de determinadas condutas dolosas das quais resultavam prejuízos à arrecadação tributária[30].
Quando o valor positivado pelo art. 20, caput, da Lei nº 10.522/2002foi majorado para R$ 10.000,00 (dez mil reais), o Superior Tribunal de Justiça retrocedeu em sua jurisprudência e, durante os anos subsequentes, passou a predominar a interpretação de que somente seria insignificante a conduta que importasse em desfalque tributário menor ou igual à R$ 100,00 (cem reais), tendo em vista que apenas créditos até este patamar valorativo deveriam ser cancelados por força de lei (art. 18, §1º, da Lei nº 10.522/2002)[31]. Entretanto, meses após, superou-a, para alinhar-se à jurisprudência então vigente nas Turmas do Supremo Tribunal Federal[32], que vinham reformando decisões da Corte Cidadã, por compreenderem que a insignificância haveria de ser constatada até a medida do valor não executado, à época alçado em R$ 10.000,00 (dez mil reais)[33].
No primeiro semestre de 2012, o Ministério da Fazenda editou as Portarias nº 75 e 130, majorando o referido limite normativo à importância de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), circunstância nova que desencadeou o ressurgimento de divergência jurisprudencial, sobretudo na fixação de valores para fins de aplicação do princípio da insignificância em crimes materiais praticados contra a ordem tributária. Porém, a despeito de se afigurarem como atos normativos infralegais, de cunho administrativo[34], no Supremo Tribunal Federal passou a prevalecer interpretação segundo a qual o valor assentado no art. 20 da Lei nº 10.522/2002, com a redação então dada pela Lei nº 11.033/2004 (R$ 10.000,00), teria sido apenas atualizado pelas Portarias MF nº 75/2012 e 130/2012[35], servindo, por isso mesmo, de azimute ao reconhecimento da atipicidade da conduta material penalmente imputada como deletéria à ordem tributária, inclusive com efeitos extunc, para alcançar eventos pretéritos, porquanto mais benéfica ao persecutado[36].
Portanto, faz-se necessário investigar: (a)os fundamentos jurídicos para o reconhecimento da atipicidade material; (b)a eventual dependência entre o princípio da insignificância e um labor expresso do Poder Legislativo; (c) a aplicabilidade da concepção de nonada para os crimes contra a ordem tributária; e (d)os critérios para identificação dos respectivos limites pecuniários caracterizadores da bagatela dos delitos tributários materiais.
Dificilmente, nos dias atuais, alguém ousaria afirmar que o Direito Penal se ocupa somente do crime e da pena. Por isso mesmo, EDGARMAGALHÃES NORONHA definia seu conceito como “o conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica”[37].Assim, o estudo deste específico objeto cultural poderá abarcará tanto as disposições de ordem material que se encontram insertas na Lei Maior para limitar o jus puniendi estatal, como as demais outras de status infraconstitucional que se projetam até a cessação dos efeitos de uma condenação penal. No meio desse percurso investigativo, encontraremos as normas penais incriminadoras, o disciplinamento da punibilidade e aqueloutras prescrições vocacionadas a incidir para individualizar, afastar ou eximir a pena[38].
De ordinário, ao editar lei penal incriminadora, o legislador tipifica determinada conduta social como criminosa para cominar como pena o cerceamento temporário da liberdade de seu agente, cumulada ou não com multa (art. 5º, inciso XLVI, da CRFB/88 c/c o art. 1º da LICP)[39]. Ademais, a situação jurídica do indivíduo em desfavor do qual adveio provimento desfavorável ainda é agravada pelos efeitos da condenação (arts. 91, 91-A e 92 do Decreto-Lei nº 2.848/1940), dentre os quais se encontram o impedimento à naturalização (art. 12, inciso II, alínea “b”, da CRFB/88),a suspensão dos direitos políticos (art. 15, inciso III, da CRFB/88) e a perda do mandato (art. 55, inciso VI, da CRFB/88)[40].
No desiderato de resguardar o patrimônio jurídico do cidadão na maior medida possível, em face das mais gravosas consequências à esfera de seus direitos individuais, o Constituinte estabeleceu cogentes mandamentos superiores, de índole material e procedimental, que não apenas regem a persecução penal, mas verdadeiramente limitam o exercício do poder punitivo do Estado[41], titular dos mandamentos incriminadores. Noutros dizeres, distribuiu-se ao Estado[42] – e há muito tempo[43] – o ônus argumentativo de justificar rigorosamente a intervenção no âmbito de proteção dos direitos fundamentais[44].
A potencialidade de sofrer uma grave reprimenda estatal serve de influência psicológica para que o cidadão, mediante decisão pessoal, não pratique determinada conduta. Nos dizeres de PAULO DE BARROS CARVALHO, “o direito, com seu aparato coativo, sempre representou u’a motivação muito forte para se obter a transformação dos comportamentos sociais”[45].Para os casos em que o mandamento incriminador não produzir o efeito de coibir a prática delituosa, o evento criminoso deverá ser apurado com a observância do devido processo legal, ao cabo do qual se deverá aplicar a norma punitiva pertinente para impor ao autor da infração certas consequências jurídicas, com o objetivo de desestimulá-lo a praticar novamente um delito.
Ao fundamento constitucional que legitima a intervenção penal na esfera de liberdade individual do cidadão e, ao mesmo tempo, permite o controle do produto do exercício da competência legislativa em matéria penal, dá-se o nome de bem jurídico[46]. De todo modo, conquanto seja relevante a noção de que nem toda conduta intersubjetiva deve ser penalmente tipificada, senão aquelas prejudiciais a interesses juridicamente relevantes, contemplados constitucionalmente, ela não é o bastante. Afinal, como advertem DIMITRI DIMOULIS e LEONARDO MARTINS[47], tendo em vista que a atual Constituição Brasileira é considerada dirigente, raro é identificar um interesse jurídico que não ostente lastro constitucional.
Então, para que todas as etapas que permeiam o trajeto de manifestação do Direito Penal – desde o momento de produção normativa, perpassando pelos atos de aplicação do produto legislado e execução das normas individuais e concretas introduzidas – possam ser compatibilizadas com as liberdades fundamentais, a observância de outros vetores se impõe, em ordem a que se garanta o máximo de proteção ao bem jurídico com a menor restrição à esfera de liberdade individual possível. Nesse cenário é que se agregam os princípios (i) da intervenção mínima (ultima ratio)[48], (ii) da fragmentariedade[49], (iii) da subsidiariedade[50], (iv)da ofensividade[51], e (v) da insignificância[52].E a partir de suas conjugações é que se pode afirmar: o Direito Penal deverá ser concebido, interpretado, aplicado e executado com parcimônia, como medida extrema que é, uma via excepcional a ser utilizada tão somente em situações de elevada gravidade, com o fim de proteger bens jurídicos relevantes de ofensas significativas, apenas quando as demais esferas normativas não bastem para resguardá-los satisfatoriamente.
Em princípio, se a conduta desenhada em termos abstratos pela norma penal incriminadora ocorrer, a penalidade legalmente cominada deverá ser aplicada ao agente. De uma perspectiva formal, uma vez enquadrado conceptualmente o fato social à moldura normativa criminalizadora, deve-se imputar a consequência jurídica penal, na forma e intensidade prescritas conotativamente pelo legislador, em termos abstratos e gerais. Mas, em certos casos, embora formalmente subsumível ao arquétipo normativo, o evento expressará ínfima lesão material ao objeto da tutela criminal, denotando ofensa de parca intensidade, insuficiente para preencher o requisito da tipicidade material.
Pelo princípio da insignificância, a intervenção penal apenas se justificará quando a ofensa a um bem jurídico socialmente relevante, de índole constitucional e cuja integridade não pôde ser satisfatoriamente tutelada pelos demais tentáculos do direito objetivo seja significante, materialmente expressiva, não bastando sua tipicidade formal. Consoante lição de seu idealizador, CLAUSROXIN[53], para casos tais, é dado excluir da maioria dos tipos penais aqueles danos de pouca importância, para que, pelo umbral da criminalidade, passem apenas os que sensivelmente afetem o bem jurídico tutelado.Se a conduta formalmente criminosa for inexpressiva na lesão aos bens jurídicos penalmente tutelados, deve-ser a proibição de aplicar a norma penal incriminadora[54].
Engana-se, de toda maneira, quem pensa que essa norma jurídica da insignificância gera reflexos apenas para a atividade típica do Poder Judiciário, a quem compete com privatividade impor condenações criminais.Projetando-se diretamente à atividade jurisdicional, é certo que a norma jurídica da insignificância penal haverá de ser obedecida para que o Estado-Juiz se abstenha de condenar aqueles que perpetraram lesões despidas de significância a bens jurídicos penalmente tutelados. Mas, ao concretamente excluir da alçada criminal certa classe de ações ou omissões de diminuta importância, finda também por repercutir nas atividades dos demais partícipes da persecução penal[55]. Logo, pode-se dizer que o mandamento da insignificância traz consigo também a imposição de que os atores do sistema penal, no exercício de suas funções, cuidem de analisar concretamente a suposta conduta típica submetida a seus crivos e aferir sua real aptidão para motivar a aplicação da norma penal incriminadora.
O princípio da insignificância é um imperativo jurídico, ainda que “textualmente implícito”[56], de cuja obediência poderá resultar o reconhecimento da atipicidade material de uma conduta[57], para: (a) inibir a instauração do inquérito policial ou impor seu encerramento; (b) obstar o ajuizamento da ação penal, exigir sua rejeição ou tornar inviável seu processamento; e (c) impossibilitar a condenação do acusado ou caracterizar como indevida a execução da pena imposta[58].
Como o exame da tipicidade material pressupõe a prévia adequação formal da conduta ao tipo penal, e esse tão só existe em virtude de enunciação legislativa antecedente, não sobressai, a priori, uma obrigação forte ao legislador. Em princípio, impõe-se àqueles que interpretam a mensagem legislada para decidir praticar atos institucionais que importam reflexos diretos ou indiretos à esfera de liberdade individual. É o que fazem o Delegado de Polícia ao instaurar ou impulsionar o inquérito, o membro do parquet ao decidir buscar judicialmente a condenação de um ou mais cidadãos e, por fim, os órgãos do Poder Judiciário, que monocrática ou colegiadamente deliberam sobre o futuro penal do indivíduo.
Não há, todavia, qualquer impedimento para que o Congresso Nacional, mediante devido processo legislativo, exerça sua competência privativa em matéria penal para estabelecer patamares mínimos à persecução penal ou submeter certas condutas sociais ao mesmo regime jurídico criminal[59]. Nestas situações, vê-se o produto da liberdade de conformação legislativa[60], que não inibe a posterior avaliação da tipicidade material de uma dadaocorrência reconstruída pelas provas em direito admitidas[61], até mesmo porque o mundo do ser é infinitamente mais rico em conteúdo e abrangedor de detalhes do que aquele do dever-ser, que lhe intenta regular. Como o real “é único e irreversível”[62] e a experiência “é infinita e inesgotável”[63], seria, pois, impossível antever todas as nuances fáticas e reflexos materiais de um evento futuro e de possível ocorrência.
Assentada a premissa de que o Direito Penal não deve ser ocupado por questões mínimas, é chegado o momento de satisfazer uma necessidade específica: fixar os parâmetros que balizem os limites para o reconhecimento daquilo que seria penalmente irrelevante. Muito embora se reconheça a imperatividade de uma interpretação restritiva ao tipo penal, o certo é que não existem regras objetivas para a verificação da bagatela. Por isso mesmo, salutar se faz a busca pela construção racional de critérios que devam nortear a concretização do princípio da insignificância.
À míngua de regulamentação legislativa expressa e exaustiva, a jurisprudência foi delineando os requisitos para o reconhecimento da nonada penal. Naturalmente, no estudo do tema, divergências em pronunciamentos judiciais não faltam, sobretudo na tentativa de se delimitar as fronteiras entre aquilo que é penalmente relevante e o indiferente penal[64].
Indaguemos, então: que aspectos devem ser observados no momento de se aferir a tipicidade material de uma conduta formalmente criminosa? A construção de uma resposta perpassa pela análise de dois acórdãos proferidos pelo STF, mais especificamente daqueles decorrentes da apreciação do HC nº109.134/RS e do HC nº 115.246/MG, por serem julgados que resumem o tratamento jurisprudencial da insignificância criminal.
V.1. OHabeas Corpus nº 109.134/RS
Na ocasião, entendeu-se pela insignificância de uma tentativa de furto a hipermercado, pelo valor total das mercadorias, que sequer chegaram a ser efetivamente subtraídas do patrimônio da pessoa jurídica, ter alçado importância inferior a R$ 200,00 (duzentos reais)[65]. Muito embora o próprio relator tenha reconhecido em seu voto que as nuances do caso concreto teriam o condão de modificar – para acrescer, suprimir ou adaptar – os “vetores de ponderabilidade” para a aplicação do princípio da insignificância penal, elencou as seguintes diretrizes: (i) na perspectiva do agente, carência material e vulneração social; (ii) na ótica da vítima, reduzida sensação de impunidade, pela inexpressiva perda ocasionada pela conduta formalmente típica;(iii) quanto à execução, ausência de violência ou grave ameaça à integridade física ou moral;(iv) com relação à pena, evidente despropósito; e(v) no que tange ao objeto material do delito, sua inexpressividade econômica, para fins de substancial redução do patrimônio do sujeito passivo e enriquecimento ilícito do sujeito ativo.
São (todos) esses os requisitos que devem ser observados, para fins de mensuração da inexpressividade material de uma conduta formalmente típica?
A insignificância, como já se viu, é atributo do acontecimento, da ação ou omissão que, sob o aspecto formal, encontra-se criminalizada, conquanto sua ocorrência no mundo fenomênico não tenha implicado em substancial abalo da paz social. Em princípio, portanto, é inviável segregar abstratamente crimes para os quais a bagatela não pode ser reconhecida e desnecessário perscrutar os atributos pessoais do agente infrator.
Quando o agente se viu compelido a delinquir pela situação de penúria vivenciava, como sucede com o furto famélico, será aplicável à hipótese uma específica causa de exclusão de ilicitude, o estado de necessidade (arts. 23, inciso I, e 24, caput, do CP). Ademais, mesmo que a prática de uma conduta juridicamente relevante demande sempre um autor, a intensidade das alterações por ela promovidas no mundo do ser não irão variar pelo só fato de o sujeito praticante ser reincidente ou abastado. O que se pune é a conduta relevante, que independe dos atributos pessoais de seu sujeito ativo[66].
Por evidente, caso o titular da ação penal se desincumba satisfatoriamente do ônus de demonstrar que a reiteração delitiva insignificante, quando globalmente considerada, objetiva fraudar a aplicação da lei penal, mediante a deliberada reiteração de condutas com parca intensidade para a concretização de verdadeira “evasão penal”, a relação jurídica penal de cunho condenatório deverá ser buscada e constituída. Todavia, de ordinário as circunstâncias particulares da vivência do cidadão devem ser consideradas apenas para excluir a ilicitude ou individualizar a pena, mediante sua dosimetria (art. 59 do CP) e/ou aplicação de eventuais outras medidas mais benéficas (v.g. substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos[67], suspensão do processo[68]ou o sobrestamento condicional da pena[69]).
O mesmo não se pode dizer da perspectiva da vítima. O que é ou não bagatela necessariamente será para a pessoa ofendida. É na situação concreta que se deverá medir em que proporção o bem jurídico individualmente tutelado restou malferido. Se por um lado, aquelas mercadorias que se intentou furtar não eram aptas a causar o mínimo abalo ao patrimônio do hipermercado vitimado, a apropriação de R$ 200,00 (duzentos reais) de um pai de família que, com um salário-mínimo, sustenta mulher e filhos, certamente causará abalo em sua paz de espírito, prejudicará a subsistência de seu núcleo familiar e desestabilizará suas finanças. Neste exemplo criado, a impunidade serviria mesmo como estímulo para que a vítima fizesse justiça com as próprias mãos, exercendo as próprias razões de modo arbitrário (art. 345 do CP), em substituição ao dever de repressão estatal[70].
Outrossim, nos casos em que os atos executórios do evento criminoso impliquem na violação efetiva de outros bens jurídicos penalmente tutelados, como sucede com a integridade física em um crime de roubo, o exame da nonada não poderá relevar este aspecto, sob pena de, afastando certo tipo penal, findar por negligenciar outra nuance típica por ele absorvida. Em uma violação simultânea de dois ou mais bens jurídicos, a análise da tipicidade substancial deverá atentar os reflexos da conduta em ambas as dimensões, isolada e cumulativamente[71].
Já com relação ao despropósito da pena, trata-se de consequência da inexpressividade da lesão ao bem jurídico tutelado. Se, na perspectiva da vítima, inexistiu dano relevante, desnecessária se fará a aplicação de uma sanção penal, sob pena de se incorrer em excesso inconstitucional, ante a desproporcionalidade da intervenção. Ressalve-se, de toda sorte, que não é porque a penalidade é desproporcional que seu fato implicativo necessariamente seja despido de significância. A proibição de excesso pode e deve também se impor sobre a consequência juridicamente imposta, abstrata ou concretamente. Portanto, tal diretriz não serve propriamente para identificar o que é insignificante, mas para confirmar ou infirmar sua verificação[72].
A quinta e última diretriz assentada no HCnº 109.134/RS de igual modo se apresenta como requisito despiciendo para a constatação daquilo que aqui se delimitou por insignificância penal. A redução efetiva do patrimônio do sujeito passivo somente se dará quando a ofensa perpetrada, na perspectiva da vítima, não for mínima. Caso inexpressiva seja, ainda que importe no enriquecimento sem causa do sujeito ativo, não terá o condão de abalar o pacto social, devendo, por isso mesmo, ser tratado com indiferença pela esfera criminal[73].
V.2. OHabeas Corpus nº 115.246/MG
Na situação fática analisada, uma vez mais se tratou de crime patrimonial em sua forma tentada, desta feita a tentativa de subtrair 2 (duas) galinhas avaliadas em R$ 15,00 (quinze reais), cuja evidente irrelevância conduziu à unânime extinção do processo penal instaurado. Para se desincumbir do ônus constitucional de fundamentação (arts. 5º, incisos XXXV, LIV e LV, §§1º e 2º. e 93, inciso IX, da CRFB/88), o voto vencedor levou em consideração a presença de 4 (quatro) vetores[74]: (a) mínima ofensividade da conduta do agente; (b) ausência de periculosidade social da ação; (c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e(d) inexpressividade da lesão ocasionada.
Analisando tais requisitos, PAULO QUEIROZ[75] verificou redundância, “porque se mínima é a ofensa, então a ação não é socialmente perigosa; se a ofensa é mínima e a ação não perigosa, em consequência, mínima ou nenhuma é a reprovação; e, pois, inexpressiva a lesão jurídica”. E a rigor, se a ofensividade da conduta é mínima, a lesão não ostentaria proeminente expressão, sendo, por isso mesmo, incapaz de malferir a ordem social e despertar acentuada reprovação, para além daquele juízo negativo que naturalmente já recai sobre todo ato ilícito[76].
Em suma, pelo que até o momento se refletiu, puderam-se eleger dois critérios essenciais à verificação da insignificância penal. São eles: (i) o grau de expressividade da lesão ocasionada a bem jurídico de outrem; e (ii) a existência de violação significante, mediante a conduta analisada, a outros bens jurídicos penalmente tutelados.
Como se deverá interpretar o grau de expressividade da lesão ocasionada a bem jurídico de outrem nos casos em que o titular do objeto de tutela penal for uma pessoa jurídica de direito público ou privado?
Mesmo sem adentrar ao mérito das discussões que ora colocam a pessoa jurídica no conjunto de ficções criadas pelo Direito, ora defendem sua existência real[77], não se pode afirmar com propriedade que uma sociedade empresária ou mesmo um ente político tenham sentimento próprio e honra subjetiva, sendo passíveis de sofrer abalos na paz de seus espíritos, que a bem da verdade inexistem[78].
Caso se trate a vítima de uma pessoa jurídica de direito privado, que tenha seu patrimônio e funcionários ordenados de modo a desenvolver determinadas atividades finalísticas, uma conduta dolosa que intente reduzir seu patrimônio será relevante se lhe prejudicar o regular funcionamento ou manutenção, atrapalhando o desenvolvimento de seu objeto social. O mesmo, contudo, não se pode dizer de uma pessoa jurídica de direito público, cuja finalidade é servir, direta ou indiretamente, à sociedade, promovendo na maior medida possível – e com todos os recursos disponíveis – o bem comum. Independentemente de crer, como THOMAS HOBBES[79], que a existência do Estado se deveu à necessidade coletiva de paz e segurança, ou JOHN LOCKE[80], para quem a proteção da propriedade privada impôs seu surgimento, a atual Constituição da República Federativa do Brasil mostrou-se pródiga em elencar inúmeros outros deveres estatais, tais como a promoção dos direitos sociais à saúde, moradia, educação, previdência social, proteção à infância e assistência aos desamparados (art. 6º, caput, da CRFB/88), a serem concretizados na medida das possibilidades financeiras[81].
A constante demanda pela implementação de atuações estatais na melhoria das condições sociais impõe que se empreguem todos os recursos humanos, estruturais e financeiros existentes para efetivar as obrigações de fazer exclusiva ou solidariamente impostas aos entes políticos (arts. 21, 23, 25 e 30 da CRFB/88). Justamente por isso, deve-se zelar pela eficácia social das normas de direito administrativo, tributário e financeiro. A administração pública deverá ser produtiva e econômica, a arrecadação tributária não poderá ser frustrada e a gestão das receitas públicas nunca deverá descompassar dos trilhos da responsabilidade fiscal.
Ainda que a ausência de determinada verba não necessariamente venha a prejudicar o funcionamento ou manutenção estatais, certamente fará falta na realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3ºda CRFB/88), o que circunscreve o reconhecimento da insignificância apenas àqueles casos em que, por imperativo da eficiência, não se compense mobilizar a Administração Pública para buscar a satisfação da pretensão pecuniária. Então, relevante será tudo aquilo que o ente federativo deverá perseguir, ao passo que insignificante, a contrario sensu, tão somente aquilo que sequer justifique a atuação dos órgãos administrativos de cobrança e postulação judicial, mediante a adoção dos meios legais.
Expressiva será a lesão ocasionada ao patrimônio jurídico de uma pessoa jurídica de direito privado quando interferir em seu funcionamento ou manutenção, atrapalhando o regular desenvolvimento de seu objeto social. Quando o sujeito passivo for um ente público,a ofensa ao bem jurídico será ínfima se seu reflexo não for suficiente para, dentro dos limites da legalidade, justificar financeiramente a atuação dos órgãos administrativos competentes para sua reparação, quando se tratar de crimes materiais, cujas consumações produzem“ resultado naturalístico”[82].
Se o Poder Público Federal, Estadual, Distrital ou Municipal renuncia a determinada dívida fiscal, desconstituindo-a ou simplesmente obstando sua execução, estará seguramente, como entende RUI STOCO[83], declarando sua insignificância? Uma resposta coerente com o que já foi sedimentado será positiva se e somente se o valor envolvido não superar o provável custo em sua persecução, ou seja, quando a eficiência administrativa já não impusesse sua cobrança[84].Conquanto óbvio, não é demasiado pontuar que os patamares da insignificância, sob a ótica da expressividade, tenderão a variar de acordo com a realidade própria de cada pessoa política de direito público interno[85], tendo em vista a autonomia – governamental e legislativa – que o pacto federativo lhes confere[86] e as desigualdades regionais existentes[87].
Como cada pessoa política possui estrutura administrativa organizada de modo próprio e peculiar, divergindo das demais outras ora na extensão e custo do quadro de pessoal, ora nos recursos financeiros e materiais disponíveis, torna-se inviável desconsiderar tais particularidades para reconhecer de modo uniforme o valor da insignificância de crimes materiais praticados em prejuízo de entes políticos dissimilares, como sugeriuPAULO QUEIROZ[88] para crimes materiais contra a ordem tributária. O que pode suceder é o Congresso Nacional, valendo-se do exercício de sua competência privativa em matéria penal, estabelecer em caráter geral, mediante edição de norma com índole nacional, um valor mínimo para configuração dos delitos tributários. Porém, isto jamais poderá inibir posterior avaliação da tipicidade material de uma dada ocorrência penal tributária, ao lume do custo unitário de um executivo fiscal, caso este venha a exceder o parâmetro legal mínimo, fixado em caráter geral pelo legislador penal.
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[1]In: Antônio Carlos Mathias Coltro; Gianpaolo Poggio Smanio e André Guilherme Lemos Jorge. (Org.). Sistema de Justiça Criminal, entre Garantias e Efetividade: Estudos em Homenagem a Wiliam Wanderley Jorge. 1ed.São Paulo/SP: Referência, 2023, v. , p. 429-466.
[2] Doutor e Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Conselheiro do Conselho Nacional de Educação (CNE).Professor nos Cursos de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado da PUC/SP. Professor dos Cursos de Especialização e Mestrado do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Membro do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FECOMÉRCIO/SP). Membro do Conselho Consultivo do Instituto Potiguar de Direito Tributário (IPDT). Advogado.
[3] Doutorando e Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Assistente no Mestrado em Direito Tributário do IBET. Professor Seminarista e Orientador de Monografias no Curso de Especialização do IBET. Diretor-Auxiliar no Instituto Potiguar de Direito Tributário (IPDT). Membro do Comitê Tributário Permanente de ICMS e ISS da Associação Brasileira da Advocacia Tributária (ABAT). Advogado.
[4] Pensamos que as categóricas assertivas de ALFREDO AUGUSTO BECKER nesse sentido permanecem atuais: “Pela simples razão que não pode existir regra jurídica independente da totalidade do sistema jurídico, a autonomia (no sentido de independência relativa) de qualquer ramo do Direito Positivo é sempre e unicamente didática para, investigando-se os efeitos jurídicos resultantes da incidência de determinado número de regras jurídicas, descobrir a concatenação lógica que as reúne num grupo orgânico e que une este grupo à totalidade do sistema jurídico. ‘Autonomia didática’ pode ter até uma única regra jurídica, se e enquanto são investigados os efeitos jurídicos decorrentes de sua incidência, para encontrar o fundamento lógico que revelará estar a regra jurídica ligada a este ou aquele grupo de regras jurídicas.” [BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2013. p. 34].
[5] JORGE, Wiliam Wanderley. Curso de Direito Penal Tributário. Campinas: Millennium, 2007. p. 10.
[6] JORGE, Wiliam Wanderley. Curso de Direito Penal Tributário. Campinas: Millennium, 2007. p. 10
[7] JORGE, Wiliam Wanderley. Curso de Direito Penal Tributário. Campinas: Millennium, 2007. p. 10.
[8]“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”.
[9]Como já alertava TULLIO ASCARELLI, ainda em meados do século passado, uma vez dada a conhecer no contexto decisório, a interpretação judicialmente formulada se converte em texto precedente e, nesta qualidade, necessariamente equívoco para futuras aplicações [Cf. ASCARELLI, Tullio. Jurisprudencia Constitucional y Teoría de la Interpretación. Traducción de Alberto Puppo. In: POZZOLO, Susanna; ESCUDERO, Rafael (Editores). Disposición vs. Norma. Lima: Palestra Editores, 2018].
[10] Na concepção de JOAQUIM BARBOSA, “com o passar do tempo, e em razão da multifacetariedade intrínseca do fenômeno criminal, haverá, sem dúvida, uma tendência inevitável à obsolescência da súmula e à consequente necessidade, para esta Corte, de revogá-la ou de proceder às sucessivas clarificações”. ELLEN GRACIE, a seu turno, ponderou que, “se o seu objetivo é justamente a segurança jurídica, ela deve, na medida do possível, ser escrita em mármore para ser permanente, perene, para demonstrar rumos para o futuro”. Ena óptica de MARCO AURÉLIO, “em outras instâncias do Judiciário, o verbete leva à bateção de carimbo, à generalização dos casos, o que se dirá se o verbete, ainda por cima, for vinculante”, que conduziria, mediante adoção da “lei do menor esforço, à observância que, em certas situações, mostra-se imprópria”.
[11] Em dado momento, o Ministro Relator LUÍS ROBERTO BARROSO assim consignou em seu voto: “[…] caracterização do crime depende da demonstração do dolo de apropriação, a ser apurado a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de ‘laranjas’ no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado etc.”.
[12]v.g. IPI, ISSQN, Contribuições ao PIS/PASEP e COFINS.
[13] HC nº 99.740/SP, Rel. Min. AYRES BRITTO.
[14] HC nº 129.302/PR, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI.
[15] RHC nº 182.649/SP, Rel. Min. ROSA WEBER.
[16]“O fortalecimento do Poder Legislativo é uma realidade em face do conjunto de dispositivo constitucionais que formalizam a Comissão Mista Permanente do Orçamento; que tratam da permissão para apresentar projetos ou emendas majoradoras ou redutoras de despesas, consagrando, assim, a participação na feitura do orçamento; que extinguem o decreto-lei na forma autoritária que o revestia, embora ele se recomponha mais modestamente nas chamadas “medidas provisórias”; na participação da concessão ou renovação de frequências e canais de rádio e televisão, como última instância; na competência para fixar ou modificar o efetivo das Forças Armadas; na indicação de 2/3 de membros do Tribunal de Contas da União; na sustação de atos normativos do Governo; nas decisões sobre o veto presidencial com maioria absoluta e não mais com a exigência dos 2/3 como na Carta anterior; no fortalecimento das comissões técnicas armadas de poderes para aprovar projetos, simplificando e desburocratizando o processo legislativo; no veto do Legislativo aos acordos e tratados internacionais, enfim, na ampla participação e fiscalização do Executivo. Este incompleto elenco de novas e reforçadas atribuições concedidas ao Legislativo, coloca o Poder em destaque, quase tipificando um sistema parlamentarista, em que o Executivo, ao mesmo tempo que perde parte de sua até então ilimitada competência, permite à sociedade, através de sua mais legítima representação, ser partícipe efetiva dos programas, projetos e responsabilidade governamentais. Isso, se não preferir postular diretamente com seus projetos, como o texto constitucional expressamente faculta.” [BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 499-500].
[17]Cf.SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 391-392.
[18]Cf. Art. 11, §1º, da Lei nº 4.357/1964, art. 2º da Lei nº 4.729/1965, art. 18 do Decreto-Lei nº 157/1967, art. 2º do Decreto-Lei nº 326/1967, art. 2º do Decreto-Lei nº 326/1967, art. 5º do Decreto-Lei nº 1.060/1969, art. 1º, §3º, do Decreto-Lei nº 1.893/1981, art. 1º, §4º, da Lei nº 1.951/1982, art. 24, §3º, do Decreto-Lei nº 2.303/1986, art. 1º, §4º, do Decreto-Lei nº 2.331/1987, art. 14 da Lei nº 8.137/1990, art. 98 da Lei nº 8.383/1991, art. 34 da Lei nº 9.249/1995, art. 15, §3º, da Lei nº 9.964/2000, art. 9º, §2º, da Lei nº 10.684/2003, art. 69 da Lei nº 11.941/2009 e art. 6º da Lei nº 12.382/2011.
[19] Qual seria, por exemplo, a plausibilidade de se impor o pagamento de um crédito tributário prescrito (arts. 156, inciso V, e 174, do CTN) para extinguir a punibilidade de um crime de sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do CP) se, posteriormente, o sujeito passivo poderá pleitear a repetição do indébito tributário (art. 165, inciso I, do CTN)? Indo além, mesmo a existência de uma medida judicial de caráter antiexacional (v.g. ação anulatória ou embargos à execução fiscal), se acompanhada de garantia legalmente equiparada à dinheiro (art. 9º, inciso II, §§2º e 3º, e 15, inciso I, da LEF), deveria garantir a suspensão da persecução penal, dado que, em tal cenário, será inevitável a posterior extinção da relação obrigacional tributária, quer pelo advento de sentença favorável, que reconheceu a ilicitude do débito fiscal, quer pelo advento de sentença desfavorável seguida de execução da garantia dada, para fins de satisfação do crédito tributário.
[20] “A entrega da declaração pelo contribuinte reconhecendo o débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”.
[21]A expressão “ou contribuição”, a rigor, é desnecessária, posto que “contribuição” é inquestionavelmente uma espécie tributária, por se amoldar à definição prescrita pelo art. 3º do CTN. E assim sendo, conviria unificar, naquilo em que há redundância, as disposições do art. 168-A do CP e do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990, bem como as disposições do art. 337-A do CP e do art. 1º da Lei nº 8.137/1990.
[22] “Não obstante a jurisprudência pacífica quanto ao termo inicial dos crimes contra a ordem tributária, o Supremo Tribunal Federal tem decidido que a regra contida na Súmula Vinculante 24 pode ser mitigada de acordo com as peculiaridades do caso concreto, sendo possível dar início à persecução penal antes de encerrado o procedimento administrativo, nos casos de embaraço à fiscalização tributária ou diante de indícios da prática de outros delitos, de natureza não fiscal” [ARE nº 936.653 AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO].
[23] Posteriormente transformado na Lei nº 8.137/1990, que sucedeu tacitamente a Lei nº 4.729/1965.
[24] VILLEGAS, Héctor B. Curso de Direito Tributário. Tradução de Roque Antonio Carrazza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 115.
[25] Um exemplo evidente desta situação jurídica encontramos na relação entre Municípios e Concessionárias de Energia Elétrica quanto à cobrança da Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública, ex vi do art. 149-A, parágrafo único, da CRFB/88.
[26]O art. 11, caput, da Lei nº 8.137/1990, assim estatui: “Quem, de qualquer modo, inclusive por meio de pessoa jurídica, concorre para os crimes definidos nesta lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Em certo sentido, o legislador penal caminhou ao encontro do disposto pelo legislador tributário no art. 137, caput e inciso I, do CTN, in verbis: “Art. 137. A responsabilidade é pessoal ao agente: I – quanto às infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito; […]”. E não se tratou propriamente de inovação legislativa, posto que o art. 6º da Lei nº 4.729/1965 assim já dispunha: “Quando se trata de pessoa jurídica, a responsabilidade penal pelas infrações previstas nesta Lei será de todos os que, direta ou indiretamente ligados à mesma, de modo permanente ou eventual, tenham praticado ou concorrido para a prática da sonegação fiscal”.
[27] A personalidade de uma pessoa jurídica não se confunde com aquela de seus sócios ou gestores. Tratam-se, pois, de realidade jurídicas autônomas, independentes e inconfundíveis, não passíveis de desconsideração automática e desarrazoada. A esse respeito, o STF já se pronunciou, quando proclamou a inconstitucionalidade – também material – do art. 13 da Lei nº 8.620/1993, e fez constar no corpo da ementa do acórdão do RE com RG nº 562.276/PR, de Relatoria da então Ministra ELLEN GRACIE, o seguinte trecho: “[…] 7. O art. 13 da Lei 8.620/93 também se reveste de inconstitucionalidade material, porquanto não é dado ao legislador estabelecer confusão entre os patrimônios das pessoas física e jurídica, o que, além de impor desconsideração ex lege e objetiva da personalidade jurídica, descaracterizando as sociedades limitadas, implica irrazoabilidade e inibe a iniciativa privada, afrontando os arts. 5º, XIII, e 170, parágrafo único, da Constituição. […]”.
[28] Cuidam-se de condições necessárias, mas não suficientes para a caracterização de determinadas subclasses de crimes tributários materiais.
[29] LINS, Robson Maia; FERNANDES, Pablo Gurgel. Reflexões acerca da Justa Causa nos Crimes de Sonegação Fiscal. In: CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.); SOUZA, Priscila de (Org.) Constructivismo Lógico-Semântico e os Diálogos entre Teoria e Prática. São Paulo: Noeses, 2019. p. 1141.
[30] A partir do início dos anos 2000, Quinta e Sexta Turmas do Superior Tribunal de Justiça passaram a reconhecer a insignificância para condutas formalmente típicas de descaminho (art. 334 do CP) das quais resultassem omissão de tributo no valor de até R$ 1.000,00 (mil reais). [Cf.REsp nº 234.623/PR, Rel. Min. VICENTE LEAL; REsp nº 221.489/PR, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA; REsp nº 229.542/PR, Rel. Min. FÉLIX FISCHER; REsp nº 235.151/PR, Rel. Min. GILSON DIPP; REsp nº 238.894/PR, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO; REsp nº 238.897/PR, Rel. Min. FONTES DE ALENCAR; REsp nº 246.590/PR, Rel. Min. PAULO GALLOTTI]. Pouco tempo depois, chegou-se a verificar decisões proferidas no sentido de reconhecer a atipicidade material de crimes contra a ordem tributária que implicassem em prejuízo aos cofres federais não superiores ao patamar de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), constante da redação originária do art. 20, caput, da Lei nº 10.522/2002, sob o argumento de que os casos de dispensa na promoção da execução fiscal pertinente evidenciariam a desproporcionalidade da persecução penal correlata. [Cf. REsp nº 308.307/RS, Rel. Min. LAURITA VAZ; e HC nº 34.827/RS, Rel. p/Acórdão Min. FÉLIX FISCHER].
[31] Cuidou-se de concepção inicialmente capitaneada pelo Ministro FÉLIX FISCHER [Cf.REsp nº 685.135/PR, Rel. Min. FÉLIX FISCHER] e posteriormente replicada pela Terceira Seção [Cf. EREsp nº 966.077/GO, Rel. Min. LAURITA VAZ].
[32]Cf. REsp nº 1.112.748/TO, Rel. Min. FÉLIX FISCHER.
[33]Cf.HC nº 92.438/PR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA; HC nº 96.976/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO; e HC nº 96.309/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA.
[34]A esse respeito, em tônica crítica, LENIO LUIZ STRECKse expressou: “Magnífico. Uma Portaria do Ministério da Fazenda tem o poder de descriminalizar condutas (aliás, na AP 470, uma Circular do Banco Central absolveu um dos acusados, ao ‘descriminalizar’ a conduta!). Também já denunciei isso em várias oportunidades. Leio que a Justiça Federal de segundo grau (TRF) decidiu que não cabe ação penal nas hipóteses em que o valor sonegado é inferior a R$ 20 mil. […] E concedeu liminar em Habeas Corpus suspendendo o curso da ação penal que o Ministério Público Federal moveu contra sócios de uma empresa por não recolherem R$ 17.993,95 em Imposto de Renda (crime previsto no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90).” [STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – o Senso Incomum. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 70].
[35]Cf. HC nº 120.617/PR, Rel. Min. ROSA WEBER; HC nº 120.096/PR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO; HC nº 120.139/PR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI; HC nº 121.892/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI; HC nº 122.029/PR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI; HC nº 119.849/PR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI; e HC nº 122.722/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI;
[36]Cf.HC nº 121.408/PR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI; HC nº 122.213/PR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI; e HC nº 123.032/PR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI.
[37] NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal: introdução e parte geral. Vol. 1. 38. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 04.
[38] Ao Direito Processual Penal, por seu turno, incumbirá regrar a persecução penal e a execução das normas individuais e concretas introduzidas pela atividade típica do Poder Judiciário, a quem a ordem jurídica brasileira atribuiu, com exclusividade, o credenciamento para editar provimentos penais condenatórios.
[39] Não desconhecemos a existência de penas restritivas de direitos, mas a elas o direito geralmente confere caráter substitutivo, quando atendidos requisitos legais específicos (v.g. arts. 43 e 44 do CP), circunstância que somente reafirma a intervenção penal na esfera de direitos individuais.
[40] Não olvidemos, ainda, do alerta de FRANCESCO CARNELUTTI: “Apenas com o surgimento da suspeita, o acusado, a sua família, a sua casa, o seu trabalho são inquiridos, examinados, isso na presença de todo mundo. O indivíduo, dessa maneira, é feito em pedaços.” [CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. 3. ed. Campinas: Russell Editores, 2009. P. 54-55].
[41] “O âmago do movimento que a história denominou de constitucionalismo repousava precisamente na edição de um acordo fundamental, por meio do qual a comunidade estabelecesse regras rigorosas para prevenir e/ou reprimir o abuso do poder político.” [CARVALHO, Osvaldo Santos de; FERNANDES, Pablo Gurgel. O Papel Definidor do Legislador Complementar Tributário; rememorando lições de José Souto Maior Borges que permanecem atuais. In: BERNARDES, Flávio Couto; MATA, Juselder Cordeiro da; LOBATO, Valter de Souza. ABRADT: estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2022. p. 784].
[42]Na precisa síntese de BODO PIEROTH e BERNHARD SCHLINK: “Por um lado, os direitos fundamentais têm uma função jurídico-objetiva pelo fato de limitarem a margem de atuação e de decisão do Estado. O Estado não pode fazer uso arbitrário das suas competências legislativas, administrativas e jurisdicionais, mas apenas pode fazer o uso que os direitos fundamentais permitirem. Estes são limite ou negação das competências do Estado e, nessa medida, normas de competência negativa.” [PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. Tradução de António Francisco de Sousa e António Franco. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 71].
[43] Regressando um pouco no tempo, pode-se verificar que a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, já assegurava aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, ao lado da segurança individual e da propriedade, o direito à liberdade (art. 122, caput), bem como vedava a retroação da novatio legis in pejus e a aplicação de penas corpóreas perpétuas (§13). Ao se valer da competência que aquele supremo fundamento de validade lhe outorgava (art. 180), o Presidente da República à época, Getúlio Vargas, editou o DL nº 2.848/1940 – mais conhecido como o Código Penal que, após incontáveis alterações tópicas, vigora até a presente data – e ainda em sua redação originária fez consignar as regras da legalidade, anterioridade e a possibilidade de abolitio criminis (arts. 1º e 2º).
[44] No plano Constitucional temos, ilustrativamente: (a) devido processo legal, contraditório, ampla defesa e juiz natural (art. 5º, incisos XXXVII, LIII, LIV e LV, da CRFB/88); (b) caráter excepcional que se atribuiu às prisões que eventualmente antecedam o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, incisos LVII, LXI, LXV e LXVI, da CRFB/88)[44]; (c) impossibilidade de penas cruéis e desumanas, que desrespeitem a integridade física e moral do sujeito de direitos e se dissociem das peculiaridades do caso concreto (arts. 1º, inciso III, e 5º, incisos XLVI, XLVII, XLVIII, XLIX e L, da CRFB/88); e (d) necessidade de prévia determinação judicial para a realização de interceptação telefônica, inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, o respeito ao nemotenetur se detegeree a garantia do habeas corpus (art. 5º, incisos XII, LVI, LXIII e LXVIII, da CRFB/88). Já no âmbito infraconstitucional, por sua vez, o CPP adotou como fundamento para rejeição da denúncia ou queixa a ausência de justa causa (art. 395, inciso III). Assim, de modo expresso, ao lado dos pressupostos processuais e das condições da ação, estabeleceu-se mais um requisito para o correto exercício e recebimento da ação penal: a existência daquilo que AFRÂNIO SILVA JARDIM descreve como sendo “um lastro mínimo de prova que deve fornecer arrimo à acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado” [JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 93].
[45] CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos Jurídicos da Incidência. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 42.
[46]Vida, liberdade, propriedade e meio ambiente são apenas alguns elementos da classe de objetos legitimamente tutelados pela esfera penal brasileira, quer de modo direto, mediante tipos penais como homicídio, sequestro, furto (arts. 121, 148 e 155 do CP) e poluição (art. 54 da Lei nº 9.605/1998), quer indiretamente, mediante criminalização de condutas deletérias aos entes públicos, aos quais, dentre outras funções, incumbiu-se a promoção das condições materiais para o resguardo e fruição dos direitos fundamentais.
[47]DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 148.
[48]Nem todasas ilicitudes devem se sujeitar à máxima repressão estatal.
[49] O ramo da intervenção mínima deverá se ocupar da salvaguarda de pequena parcela de bens jurídicos, aqueles mais relevantes, imprescindíveis à manutenção dos alicerces para uma equilibrada vivência social. Em feliz metáfora, LUIZ REGIS PRADO leciona: “Esse princípio impõe que o Direito Penal continue a ser um arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente.” [PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. 8. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2019.p. 109-110].
[50] A ameaça punitiva e eventual aplicação da pena somente haverão de ter vez se disciplinamentos de outros ramos do direito forem insuficientes. A seu respeito, ilustrativas são as palavras de Guilherme de Souza Nucci: “Ocorrida a vulneração legal, busca-se amparo do Direito Administrativo, impondo-se uma multa; quando não, socorre-se do Direito Civil, galgando-se o direito à reparação do dano; ainda, procura-se o Direito Trabalhista, corrigindo-se a falta. E assim sucessivamente. Esgotadas as medidas punitivas extrapenais, permanecendo a reiteração do ato lesivo, capaz de gerar rupturas indesejáveis na paz social, lança-se mão do tipo penal incriminador, viabilizando-se a intervenção estatal penal.” [NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 168]. Noutros termos, mas em igual senda, perfilhou-se o pensamento de RUDOLF VON IHERING: “O direito criminal começa onde os interesses da sociedade reclamam o estabelecimento de uma pena; e esta torna-se indispensável quando a boa fé e a probidade nas transacções já não podem ser salvaguardadas por outro modo.” [JHERING, Rudolf von. A Evolução do Direito. Tradução de Abel D’Azevedo. Lisboa: José Bastos,1963.p 321].
[51]Que se punam aquelas condutas que importarem em verdadeira ofensa a bem digno de proteção, real ataque a um interesse relevante para a sociedade. Devem ser repelidas imputações sancionatórias penais à míngua de lesividade, para condutas despidas de conteúdo lesivo à bem jurídico relevante.
[52] Porquanto dotada de centralidade ao estudo, à exceção dos demais, o princípio da insignificância terá seu conceito definido logo mais adiante, no corpo do texto.
[53]Cf.ROXIN, Claus. Política Criminal y Sistema del Derecho Penal. Traducción de Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosh, 1972. p. 73-74.
[54]mesmo que se exclua da tipicidade penal situações de insignificância, FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO bem ressaltou que elas poderão receber, se necessário, tratamento adequado como ilícitos de natureza civil, administrativa ou de outro ramo extrapenal [Cf.TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 143].
[55] Por óbvio, nas hipóteses em que a condenação penal não se afigurar juridicamente possível, mormente por se estar diante de um indiferente penal, despidos de sentido serão procedimentos investigativos e proposituras de denúncias, haja vista que as atribuições institucionais da Polícia Judiciária e do Ministério Público, tal como distribuídas pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por intermédio dos arts. 144, §1º, inciso I, e §4º, e 129, inciso I, pressupõem a existência de indícios da prática de condutas que alcancem estatura penal, sob pena de servirem apenas como vãos instrumentos de terror ao cidadão.
[56]O só fato de um comando não encontrar formulação expressa no plano literal em nada implica prejuízo ao seu grau de positividade, até mesmo porque, a rigor, toda norma jurídica (em sentido estrito), na qualidade de significação logicamente articulada, encontra-se implícita, como resultado de uma trajetória cognitiva ultimada na consciência do jurista. [Cf. GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a Renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p. 50-51]. Considerando tempos de normalidade institucional, vigora a necessidade de examinar as intervenções no direito fundamental à liberdade sob o crivo do critério da proporcionalidade (em sentido amplo), que ganha revelo, sobretudo, por se tratar de mandamento ao qual o constituinte não submeteu qualquer reserva legal. A saber, como elucida LEONARDO MARTINS, o critério da proporcionalidade se apresenta como limite material ao “poder do Estado de restringir a área de proteção de um direito fundamental”, em decorrência de sua própria eficácia vertical. Por isso, a decisão política do legislador ou mesmo os atos executivos e jurisdicionais editados pelos poderes estatais somente deverão prevalecer se, quando adequados, satisfizerem um propósito legítimo de modo a poupar na maior medida possível a liberdade intervinda e forem proporcionais em sentido estrito. [Cf. MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 139-140]. Trazendo para a realidade do Direito Penal, o controle da proporcionalidade na mitigação dos status libertatisindividual poderá ter por objeto tanto as normas gerais e abstratas como o produto de suas aplicações, as normas individuais e concretas produzidas por atos administrativos ou jurisdicionais das autoridades competentes.
[57] Não há óbice jurídico, com fundamento na dignidade da pessoa humana e no direito à liberdade, para que se conceba a existência de um direito fundamental do cidadão de não se submeter a uma persecução penal ou mesmo arcar com uma condenação e suas consequências, quando tais medidas do aparato criminal se mostrarem desproporcionais, em decorrência da satisfatoriedade de outros ramos do direito na repressão a seu comportamento ou da ausência de relevância da conduta a si atribuída. E em uma perspectiva utilitarista, que considere a finitude dos recursos humanos e materiais do aparato estatal, para que se resguarde na maior medida possível, de modo eficiente (art. 37, caput, da CRFB/88), a harmonia da vivência social, mediante ações de repressão à criminalidade, suas devidas apurações e céleres respostas jurisdicionais (art. 5º, inciso LXXVIII, da CRFB/88), somente expressivas situações concretas que abalem mais fortemente o pacto social é que devem motivar a atuação do Estado.
[58]Não é escopo deste artigo traçar os mecanismos para concretização do princípio da insignificância penal. Entretanto, convém salientar que o direito positivo admite que a própria autoridade policial indefira requerimentos de instauração de inquérito (art. 5º do CPP) ou deixe de indiciar sujeitos (art. 2º, §6º, da Lei nº 12.830/2013), contempla a possibilidade de o Ministério Público pedir o arquivamento do inquérito policial (art. 28 do CPP) e franqueia diversas oportunidades para que o Poder Judiciário reconheça a nonada penal, que vão desde a apreciação de habeas corpustrancativo da investigação, passando pelo juízo de admissibilidade da denúncia e seu julgamento de mérito – eventualmente em múltiplas instâncias –, até a apreciação de uma eventual revisão criminal (arts. 386, 395, 397, 621 e 647 do CPP).
[59]Neste último caso, ainda que comine consequências outras que não a privação de liberdade, a exemplo do art. 28 da Lei nº 11.343/2006.
[60]De toda forma, tais considerações não autorizam propalar a ausência de vinculação do legislador à razoabilidade. CESARE BECCARIA, há séculos [Cf.BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e delle Pene. London: Lackington, Allen, and Co., 1801], já defendia a necessidade de a pena determinada por lei ser proporcional ao delito praticado. “Foi este punhado, pois, de idéasnotaveis, expostas com brilho e clareza em um pequenino livro que, após contradictas violentas e por vezes injuriosas ao seu autor, provocaram uma revolução universal, operando reformas profundas e radicaes nas legislações dos povos cultos e reduzindo a ruinas os systemaspenaes até então existentes.” [ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As Tres Escolas Penaes: classica, anthropologica e critica. 2. ed. cor. e aug. Rio de Janeiro:Jacintho Ribeiro dos Santos, 1917.p. 11]. ADeclaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, emseu art. 8º, assentou que a lei deveriaestabelecerapenas as penasestritamentenecessárias, in verbis: “La Loi ne doit établir que des peines strictement et évidemment nécessaires, et nul ne peut être puni qu’en vertu d’une Loi établie et promulguée antérieurement au délit, et légalement appliquée.”. Na realidade brasileira, encontram-se também outras manifestações de razoabilidade na gradação do tratamento de certas infrações penais, como sucede com a competência constitucional dos juizados especiais criminais, para aquelas condutas de “menor potencial ofensivo” (art. 98, inciso I, da CRFB/88), passíveis de atrair a adoção de medidas diversas da prisão (arts. 72, 74, 76 e 89 da Lei nº 9.099/1995). Podem ser citadas ainda a redução da penalidade a ser imposta quando, nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, o dano é reparado (art. 16 do CP); a proibição legal de se punir o crime impossível (art. 17 do CP); a possibilidade de, no crime de apropriação indébita previdenciária, se deixar de aplicar a pena privativa de liberdade, atendidos os requisitos do art. 168-A, §3º, do CP; e no Código Penal Militar, inclusive, a hipótese de se considerar a lesão corporal levíssima tão somente como infração disciplinar (art. 209, §6º). Em todos esses casos, contudo, não se trata de obediência ao princípio da insignificância, mas de conformação legislativa do poder punitivo estatal para um determinado conjunto de situações cuja ofensividade, dentro de uma política criminal encampada, não justifica a incidência de consequências jurídico-penais tão severas.
[61] “As provas servem, exatamente, para voltar atrás, ou seja, para fazer, ou melhor, para reconstruir a história. Como faz quem, tendo caminhado através dos campos, tem que percorrer em sentido contrário o mesmo caminho? Segue os rastros de seus passos.” [CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. 3. ed. Campinas: Russell Editores, 2009. p. 52].
[62] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2. ed. São Paulo: LEJUS, 1999. p. 16.
[63]CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos Jurídicos da Incidência. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 146.
[64] LENIO LUIZ ESTRECK e GEORGES ABBOUD expressaram suas perplexidades a esse respeito, ilustrando-a com o seguinte relato: “[…] em um dia, o STJ nega um recurso em um caso de furto de dois frangos, uma panela e outros objetos, todos avaliados em R$ 88,50 (REsp 1.094.906); no outro, concede um Habeas Corpus para trancar a Ação Penal em um caso de sonegação fiscal no valor de R$ 4.239,36 (HC 101.505), com base na insignificância!” [STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o Precedente Judicial e as Súmulas Vinculantes? 3. ed. rev. atual. de acordo com o novo CPC. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.p. 40].
[65] “1 (um) pacote de apresuntado fatiado, 1 (uma) porção de charque, 1 (uma) lata de doce de brigadeiro, 1 (um) biquíni, 1 (uma) sunga Homem Aranha, 1 (um) kit Prs da Kids Maxteel, vestido de saída de praia, sutiã, 1 (um) fio dental, 1 (um) queijo prato, 1 (uma) bebida láctea, todos avaliados em R$ 181,91 (cento e oitenta e um reais e noventa e um centavos”.
[66]Do contrário, estar-se-ia possibilitando a imposição de tratamentos jurídicos distintos para ocorrências análogas, com expressividades similares, em ofensa ao mandamento da isonomia (art. 5º, caput, da CRFB/88). Em última análise, a punição não mais teria por motivo determinada ação ou omissão, mas a existência de um indivíduo com passado desfavorável. Sucede, no entanto, que o ordenamento jurídico vigente visa reprimir alguém pela conduta que praticou e não por quem ele é.
[67]Cf.art. 44, incisos II e III, do CP.
[68]Cf. art. 89, caput, da Lei n.º 9.099/95.
[69]Cf. art. 77, incisos I e II, do CP.
[70] A partir de um crime, outro crime poderia ser praticado e, em grau último, o fenômeno delitivo se reproduziria progressivamente. Para salvaguardar a harmonia da coexistência em sociedade, deve aí o Direito Penal se fazer presente.
[71]Isoladamente, para checar se a lesão aos bens jurídicos individualmente considerados foi significante. Em caso negativo, há que se analisar a relevância conglobada, de modo a evitar a desarmonia evidenciada no parágrafo anterior, cujo âmago se assenta no profundo sentimento de injustiça e abalo psicológico.
[72] O acontecimento apurado justifica a aplicação das mais gravosas punições em direito admitidas? A resposta negativa apontará para a exorbitância da penalidade imposta, por atipicidade material da conduta, excesso na produção legislativa ou exacerbação no momento de aplicação judicial do direito posto, leia-se, neste último caso, a fixação da pena não tão bem individualizada.
[73] Pode e deve, se assim a vítima desejar, dar azo ao ajuizamento de ação cível visando reestabelecer o status quo ante, mas não a uma drástica e custosa persecução penal.
[74] Não se tratou, propriamente, de autêntica criação daquele momento decisivo, mas de reprodução dos critérios que o próprio Ministro CELSO DE MELLO já havia idealizado ainda no ano de 2004, por ocasião do julgamento do HC nº 84.412/SP, e que passaram a reiteradamente se reproduzir na jurisprudência, além de guiar a produção doutrinária a respeito da temática.
[75] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 4ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 53.
[76] Há periculosidade social na ação? Recai sobre ela acentuada reprovabilidade? São indagações que mais servem para reafirmar ou refutar a constatação da insignificância do que propriamente para identificá-la.
[77]Lembramos, aqui, das divergências entre a “Teoria da Ficção” de Friedrich Carl von Savigny e a “Teoria da Realidade” de Otto von Gierke.
[78]É de se esperar que a infortunada sujeição aos prejuízos decorrentes de delitos, quando significativos, tenham o condão de desencadear emoções negativas na esfera subjetiva de seus gestores e/ou agentes. Entretanto, nunca no real titular do patrimônio jurídico lesado, a pessoa jurídica, à qual o ordenamento conferiu existência autônoma e personalidade jurídica própria para integrar relações jurídicas (Cf.arts. 10 do CC/19, 1º e 158 da LSA, 4º, inciso V, da LEF, 50, 1.022, 1.023 e 1.024 do CC/2002, 133 a 137 do CPC/15).
[79]Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. Tradução de Rosina D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. p. 136-141.
[80]Cf. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução de Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2011.p. 68-83.
[81]E mesmo as liberdades clássicas (de status negativus) custam, como evidenciam STEPHEN HOLMES e CASS R. SUNSTEIN, adotando como panorama a realidade norte-americana: “Nossas liberdades em relação às intromissões do Estado não são menos dependentes do orçamento nacional que nosso direito à assistência do Estado. Ambas as liberdades precisam ser interpretadas. Ambas são implementadas por autoridades públicas que, recorrente ao tesouro público, dispõem de amplo poder discricionário para interpretá-las e protegê-las.” [HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. O Custo dos Direitos: por que a liberdade depende dos impostos. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019. p. 96].
[82] Caso se esteja diante de crimes “formais” ou “de mera conduta”, o grau de expressividade da consumação haverá de ser analisado, se possível, mediante outro(s) parâmetro(s), que refogem ao presente estudo (dos limites pecuniários para o reconhecimento da insignificância nos crimes contra a ordem tributária).
[83]Cf,STOCO, Rui. Princípio da Insignificância nos Crimes Contra a Ordem Tributária. In: CARVALHO FILHO, Carlos Henrique de (Org.). Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 370-386.
[84] Para os casos nos quais o ente tributante dispense a execução de créditos tributários significantes, a impossibilidade de reconhecimento da atipicidade material em nada prejudica a possibilidade de se demonstrar, mediante fundamentos jurídicos outros, a ulterior insubsistência da pretensão punitiva.
[85] No âmbito federal, de há muito documentos normativos vêm sendo introduzidos, alterados e atualizados para estabelecer os patamares pecuniários mínimos que justificariam a mobilização do aparato estatal na busca pela satisfação judicial de créditos executados, inscritos em dívida ativa ou passíveis de inscrição pela Fazenda Nacional (v.g. art. 18, caput, da MP nº 1.110/1995, art. 1º da Lei nº 9.469/1997, art. 1º, incisos I e II, da Portaria MF nº 289/1997, art. 20 da MP nº 1.542/1997, arts. 18, §1º, e 20, caput, da Lei nº 10.522/2002, arts. 1º e 2º, da Portaria MF nº 75/2012 e art. 2º da Portaria MF nº 130/2012).
[86] É por respeito à forma federativa de Estado, inclusive, que o constituinte rigorosamente delimitou hipóteses taxativas e condicionamentos excepcionais para as intervenções federais e estaduais (arts. 34 a 36 da CRFB/88), bem como vedou a concessão de isenções heterônomas (art. 151, inciso III, da CRFB/88).
[87] A existência de desigualdades entre as regiões brasileiras, por seu turno, erigiu sua redução ao posto de objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º, inciso III, da CRFB/88), justificando até a mitigação do mandamento da uniformidade geográfica na tributação (art. 151, inciso I, da CRFB/88).
[88] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 4ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.p. 52-53.